11 December 2005

Quiçá, Banda

Os cartazes ameaçadores que se espreguiçam já por Coimbra inteira recordaram-me dessa recente novidade do panorama musical nacional – a banda da novela Morangos com Açúcar, que da ficção partiu para a realidade: os D’ZRT. Seja-me permitido omitir os comentários sobre o nome, abreviatura telemobilizada inglesa para ‘sobremesa’ – lógica de linguagem que parece ter-se espalhado também aos livros escolares com o manual francês ‘Kestudi’, à letra, qu’est-ce que tu dis? – e avançar directamente para factos que, no mínimo, nos devem preocupar.

O álbum de estreia da banda, homónimo, em apenas quinze dias conquistou o primeiro lugar no top de vendas nacional, onde ficou mais de vinte semanas, sendo quíntupla platina. Ao longo de todo o Estio, os D’ZRT realizaram mais de cinquenta concertos por todo o país, tendo gravado um DVD. Já há inclusive bonecos dos cantores para venda.

Do acima referido, deduz-se, obviamente, o estatuto de puro produto de consumo, filho do marketing e associação com a novela, dos D’ZRT. A qualidade deplorável da banda – comparável ao “crescimento” negativo da economia portuguesa – seria de esperar dum conjunto cuja lógica é a mesma da fast food. Cito palavras dum dos membros: «Como era um álbum que tinha de estar preparado num curto espaço de tempo por causa dos "timings" da novela...».

Terá sido esta premência de celeridade na apresentação das músicas que, quiçá, esteve na origem dum facto que só recentemente foi revelado no espaço cibernético. Descobriu-se que o single de lançamento e grande hit do grupo, intitulado Para Mim Tanto Faz, não é original senão na sua letra, pois a melodia foi – assim o esclarece o aviso da editora discográfica quando confrontada com as acusações dos internautas – comprada à sua compositora, a cantora japonesa Nami Tamaki, autora da música High School Queen. À luz desta alteração, talvez melhor se compreendam as palavras de Angélico: «...pudemos alterar as músicas de forma a ficarem a nossa onda e, desta forma, foi possível depois escrever as letras à nossa maneira» [itálico nosso]. Ironicamente, a coordenadora da série declara que «Eles têm um mérito muito próprio...», afirmação que sai reforçada quando se descobre que o único original no CD é Percorre o Meu Sonho.

Os D’ZRT podem ser mesmo vistos como mais uma encarnação desse deturpado conceito de banda, em que esta se cinge às vozes, relegando para a obscuridade os instrumentistas. Assim o reitera um membro do quarteto: «O objectivo era que as músicas viessem minimamente arranjadas para as nossas vozes...», ainda que confesse que, posteriormente, lhes fizeram algumas alterações, como se referiu. Um grupo destes baseia-se, necessariamente, para alcançar o sucesso, mais na aparência física dos seus elementos do que nos seus talentos. Tudo isto é triste quando pensamos numa série de bandas de garagem com bem mais arte – algo também não particularmente complicado – que não conseguem vingar no mercado por falta de apoios e a seguir nos deparamos com os números astronómicos de vendas dos D’ZRT.

Uma reportagem do Correio da Manhã mostrava como todas as celebridades – as que não ficaram fechadas num quartel e puderam ser entrevistadas – também acompanham e admiram os D’ZRT, talvez por se identificarem com a mesma mediocridade. Essa mediocridade que é o ar infesto que ensombra Portugal, da satisfação com o pouco e do elogio do baixo. Dilato as narinas, e entre o odor fétido, perscruto um ligeiro cheiro de morangos... o corvo

Crónica saída a 7 de Dezembro de 2005

Recordar Laranja Mecânica

A revista Sábado começou a lançar uma série de DVDs do mestre Kubrick, que se inaugurou com a mítica Laranja Mecânica. Este poderoso filme mostra-nos o delinquente Alex, que com o seu grupo de amigos se entretém a espancar e a violar noite dentro, sem qualquer objectivo senão o gozo que daí retira. Ainda hoje polémica, a película é uma crítica à juventude desprovida de valores, obcecada, como o protagonista, com Beethoven, sexo e sangue.

O mundo futurista de Kubrick tornou-se, com o tempo, bem real. Os recentes acontecimentos em França vieram revelar uma juventude sedenta de distúrbios e de manifestações de força. Os críticos têm procurado explicar este fenómeno com a integração deficitária dos jovens dos subúrbios e uma discriminação latente na sociedade francesa. A estes factores, juntam a falta generalizada de perspectivas das camadas mais novas e o desemprego de massas que aflige estas zonas. Porém, nem mesmo as afirmações, quiçá imprudentes, de Sarkozy – o qual, como o próprio fez questão de apontar, é descendente de imigrantes, como o seu apelido regista – ilibam os adolescentes.

Embora a princípio pudesse haver um objectivo político – e que objectivo político esse, tão reduzido que apenas pede a cabeça de um ministro, sem uma visão global para a sociedade!, rapidamente este movimento incendiário perdeu essa conotação, tornando-se numa mera diversão. Assim se explica o seu alastramento a outras cidades do Hexágono e, mais notavelmente, aos países vizinhos, onde não havia qualquer razão imediata para a sublevação dos bairros, senão o mimetismo.

O fenómeno de delinquência juvenil não é exclusivamente francês. Na América, há todo um historial dos massacres escolares, apenas uma outra faceta do mesmo problema. Recordem-se as declarações de Brenda Spencer, responsável por um massacre escolar, que se justificou afirmando: “Eu não gosto de segundas-feiras. Isto anima o dia.” ou “Não houve razão nenhuma para tal, e foi imensamente divertido.” e “Era como alvejar patos num lago”.

Em Inglaterra, este ano veio revelar o assombroso happy slapping (à letra, ‘bater feliz’): enquanto um transeunte ao acaso é espancado (com ocasionais violações ou disparos), um membro do grupo, com uma pequena câmara ou mesmo o telemóvel, grava o acto para mostrar a conhecidos ou pôr a circular na internet, onde se compete pela melhor agressão. Mesmo a situação em França, no mesmo dia em que morreram os dois adolescentes cuja electrocussão acidental espoletou todos estes eventos, um homem foi espancado até à morte em frente a dezenas de pessoas, que, passivamente, assistiram à cena.

Atribuir as culpas às televisões, aos videojogos, ao metal, é como atribuir a “intifada francesa”, como lhe chamou o Público, a toda a série de factores que os críticos enunciaram, esquecendo-se do principal: o genuíno gosto da destruição. A verdadeira causa deste é a tremenda perda de valores, resultante da educação que os pais (não) dão aos seus filhos e pela qual o Estado é também co-responsável. Enquanto não o percebermos, a Laranja Mecânica continuará a espremer o seu sumo... ■ o corvo

Crónica saída a 23 de Novembro de 2005

Das Teorias da Conspiração

Lançado no mercado português recentemente, não posso deixar de referir o novo livro de Dan Brown, A Conspiração. Não tendo editor que ma publique, venho eu, neste exíguo espaço para tão revolucionária ideia, apresentar também a minha teoria da conspiração. Declaro:

Há uma conspiração para que haja conspirações!

Tudo começou com o escândalo da Casa Pia que, anuncio!, não passa duma grande cabala! Seguiu-se a cilada armada a Fátima Felgueiras que, inocente!, contra essas movimentações maquiavélicas de bastidores, teve de se exilar no Brasil! Ela própria prova-nos a trama infame: «Falam de um saco de uma cor qualquer, o saco da vergonha para todos os que criaram e alimentaram isso»! Como não havemos de crer em tão sinceras palavras? É conluio! E o Ministério Público? Esse órgão, tão desejoso de poder, essa renovada Inquisição!, não lhe bastando estas vítimas, logo se lançou na caça de novas e não tardou a acusar Valentim Loureiro e Pinto da Costa – dois honráveis senhores do futebol português – para invocar os seus nomes a propósito do processo Apito Dourado! E o venerando e veterano Vale e Azevedo? Esse explicitou tudo no seu livro A Armadilha, onde se pode encontrar um historial de todas as cabalas portuguesas, comparando-se o visado aos reis traídos. É maquinação! Ainda não contentes, à cruzada impiedosa que aqui vimos enunciando juntaram-se os jornais, que recentemente acusaram de controlo de meios informativos o mentor Alberto João Jardim, cabeça da Madeira, que à ilha trouxe o progresso! Claro que também, em toda a sua profundidade de saber, Jardim compôs a sua própria resposta, contra-argumentando com outra conjura: o país está a ser dominado por grupos maçónicos que nos conduzem para o iberismo e anexação à Espanha. «É uma pouca-vergonha.», conclui.

E não é tudo! É tal a influência de todas estas tropas difamatórias, que conseguiram que o Presidente demitisse o competente e bem intencionado Santana! Não espanta pois a sua magoada imagem: «Tem sido difícil para quem está na incubadora, ver passar a família e, em vez de acarinhar, haver membros da família que dão uns estalos no bebé»! Conjuração! E que comentários tecer do ultraje promovido por Paulo Morais, numa mesquinha campanha contra as imobiliárias e as autarquias, numa das mais pérfidas cabalas a que o nosso país assistiu? Como reagir então ante a ignóbil trama que se concebeu contra Mário Soares, tentando abafar a energia de tão jovem candidatura, para o destruir politicamente? E não se esqueça aqui a conspiração horrenda que o Governo está a mover contra a classe média, com as suas reformas tão desnecessárias e supérfluas, ou não fosse o nosso erário abundante!

Exposta aqui esta revolucionária ideia que lança novas luzes sobre toda a história portuguesa, anseio, doravante, o convite para a publicação deste meu bestseller. E tal como Dan Brown, já preparo a minha sequela: revelar ao mundo a enorme conspiração que une o suicídio de Antero de Quental frente a uma igreja com o 11 de Setembro, ocorrido uns exactos 110 anos depois! Ainda que não pareça, um é consequência do outro. Para fechar a receita, só me falta meter a Igreja Católica algures... Ah, o Convento da Esperança! ■ o corvo

Crónica saída a 9 de Novembro de 2005

Lendo os Astros cá em Baixo

Ouvindo o noticiário da Antena 1, há duas semanas, fiquei a saber que uma tenda de campanha – oportunamente enviada para o Sudeste Asiático aquando do tsunami – pertencente ao Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, jazia há seis meses na Alfândega de Lisboa, custando já à citada entidade cinco mil euros. Refira-se também que só há mais um equipamento do género em Portugal e que, para cúmulo, teve de ser a Alfândega a avisar o interessado, que desinteressado me parece.

Se quando escutei a reportagem não contive o riso, chegado a casa, não sustive o medo. Episódio pontual, situação caricata, este acontecimento não é senão um símbolo, uma metáfora, como o autocarro de Lisboa engolido pelo asfalto – era Santana ainda presidente dessa câmara – era o código secreto em que se profetizava o declínio luso. É Portugal quem espera naquele porto; porém, todos passam e ninguém se interessa por essa estranha realidade ancorada ainda no domínio da utopia. Mas a indiferença paga-se cara e o preço sobe dia a dia – como o petróleo.

Os sinais do Apocalipse multiplicam-se, com as trombetas dos anjos ressoando mais e mais. Do céu – porque Deus é brasileiro, como dizia o filme homónimo – desce já a senhora de Fátima, para o seu último e maior milagre: o de Outubro. Independente? Indecente! Felgueiras é o triunfo da verborreia. Chamava-lhe o Diário de Notícias “nova Evita”, mas ninguém a evitou, antes lhe deram maioria absoluta, absolvendo-a de toda a sua prática dissoluta! «Nem sei se era assim tanta a esperança e a alegria no 25 de Abril» afirmou ela. Nem eu sei se então era tanta a parvoíce que hoje se revela! «O povo em democracia é soberano», disse da sua vitoriosa janela. Mas este mesmo povo, na sua ingenuidade e erro, cava a sua cova. Sócrates, o filósofo, já defendia que a ignorância era fonte de todos os males – quer-se maior prova?

Mas quando até os cultos vultos fazem tão estultos comentários, de Alegre fico triste. «Ele é um ídolo da juventude. A minha filha gosta muito de o escutar». falou assim Manuel, o poeta, de Pacman, o vocalista dos Da Weasel, mandatário para a juventude da sua candidatura presidencial. Referindo-se à versão hip-hop da Trova do Vento que Passa: «Fiquei comovido ao ouvi-lo. E fiquei ainda mais depois de saber que ele nem sequer havia escutado as versões anteriores, interpretadas pelo Adriano e pela Amália.» Não condeno a escolha, condeno o elogio. Condeno a apologia da degenerescência da juventude que tem de encontrar tais ídolos. Condeno que se exulte a ignorância da arte passada. E se Pacman não ouviu as versões cantadas do poema de Alegre, creio eu que Alegre não leu os versos escritos de Pacman. Como reagiria o candidato ante a “arte poética” do hit da banda: «Vou levar-te para casa - tomar conta de ti/ Dar-te um bom banho, vestir-te um pijama e…/Fazer-te uma papinha, meter-te na caminha/ Ler-te uma historinha e deixar-te bem calminha»? Que história cantaram a Alegre, desconheço, mas decerto vai-lhe ser dado um bom banho e ele irá para casa, lamentando o seu despenho.

«...e todo o país não é mais do que: uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam. É uma nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura...» assim se anuncia na primeira das Farpas de Eça. Lendo os astros cá em baixo, a minha astrologia remete-me para a mesma triste conclusão e assim se murmura na confusão e as vozes clamam por uma mudança de regime: novo D. Sebastião que aguardamos. Por ora, nevoeiro apenas... ■ o corvo

Crónica saída a 26 de Outubro de 2005

Morangos com Bolor

Uma série de acontecimentos recentes – inclusive uma reportagem da revista Xis sobre o tema – incutiu em mim o desejo de analisar mais este produto de lixo televisivo duma estação que é o paradigma da falta de qualidade: Morangos com Açúcar (McA), a novela juvenil da moda.

No fundo, em McA temos a versão portuguesa de novelas como Malhação/New Wave, no seguimento da estratégia da TVI de produzir – sob a aura meritória da produção nacional – versões emuladoras dos êxitos da sua concorrente directa, a SIC. É o mesmo pensamento que está subjacente, por exemplo, ao Inspector Max, unanimemente visto como uma tentativa mal sucedida e fraca de copiar a fórmula da vitoriosa e fascinante série Komissar Rex. Note-se a semelhança assustadora entre os dois nomes. Quando, contudo, a TVI ousa tentar ser original, temos nomes como McA, que levou a um amplo gozo. Convém ainda acrescentar que, apesar de ter caído no esquecimento geral, o primeiro passo dado no que respeita a novelas juvenis lusas não coube à quarta estação, mas à pública, com o saudoso Riscos (1998) – série bem mais séria.

Numa reportagem, a coordenadora da novela, Patrícia Sequeira, afirma «Queremos que sejam [os McA] vistos como reais». O triste é serem-no e não o serem simultaneamente. Parte substancial dos adolescentes vê-se retratados nas personagens, com uma vida que é tão comezinha como a novela, tão reduzida e redutora como ela. Os McA estão inseridos na acção sincronizada dos media de estandardização da classe juvenil, em conjunto com as rádios e as revistas como a Bravo ou mesmo o novo suplemento dominical do Público, a Kulto. A frase de Patrícia Sequeira – «...mas tem de seguir aquilo que eles querem.» – vem confirmar que este género de produtos juvenis vendem e, mais, são desejados. Num ciclo vicioso, os seus consumidores fomentam a proliferação destes manifestos anticultura, mas eles asseguram que novas gerações da mesma massa continuam a surgir perpetuamente.

Porém, retomando o declarado acima, é enganador julgar que os McA possuem uma relação com a realidade que não seja somente acidental. A novela marginaliza – formando no espectador uma ideia estereotipada da juventude nacional – toda uma série de adolescentes, desde os punks até à outros subgrupos, tais como os góticos, que não se enquadram de modo nenhum na visão maniqueia dos McA. Uma panóplia de acontecimentos que afectam os jovens nunca foram abordados, tal é a obsessão da novela pelas tramas amorosas. Refiro-me, por exemplo, à morte de um amigo, à imagem do aluno sistematicamente repetente, ao ostracizado da turma, ao estudante que abandona a escola – tudo situações bem reais, mas omitidas, pois não esqueçamos as palavras da coordenadora da série «Achamos que é importante sermos didácticos [...] também queremos dar alguns valores, dar uma moral, dar umas liçõezinhas». Cinismo puro.

A qualidade – ou falta dela – de representação que os actores amadores demonstram é tal que se tornou recorrente, no seio da comunidade juvenil, quando se quer criticar o mau jeito de alguém para as artes dramáticas, referir a novela, que é um paradigma negativo de arte. Mas os McA seguem no seu alto astral: existem já agendas, discos que se vendem e ocupam os primeiros lugares nas tabelas de êxitos, e, até mesmo – perdoe-se o insulto que nos fazem! – livros! O primeiro dos quais esgotou a edição numa semana. Mais indescritível ainda é o fenómeno D’ZRT, indissociável da novela, a ver numa próxima crónica. Entretanto, os Morangos continuam cheios de bolor, mas as pessoas preferem chamar-lhe açúcar... o corvo

Crónica saída a 12 de Outubro de 2005