14 December 2007

Desmocracia

Se excluir um ou outro inquérito académico para o qual algum colega tenha pedido a minha colaboração nos corredores da universidade, penso nunca ter sido interrogado para um estudo a sério. Confesso também que, na realidade, procuro evitá-los e sempre que noto, à distância de cinco passos, um desses inquisidores de rua, armados de bloco, mudo a minha marcha. Aparentemente, a minha pouca colaboração não parece afectar grandemente a produção dessas estatísticas: diariamente, toda uma nação se psiacanalisa sem Freud nas manchetes dos jornais, sempre prontos a revelar mais um qualquer diagnóstico da nossa triste condição.

Estas últimas duas semanas foram pródigas – será a proximidade do final do ano, propício sempre aos balanços? – em estudos de toda a ordem. Ficámos a saber que, de todos os países da Europa, o nosso é o solitário que regista uma descida no Índice de Desenvolvimento Humano, mesmo se é também o único da Zona Euro para o qual a OCDE prevê uma aceleração no ritmo de crescimento. O relatório PISA 2006, sobre o estado da educação nos vários países da OCDE, e cujas conclusões foram agora reveladas, confessa que apenas a Grécia, a Turquia e o México conseguem piores resultados que Portugal. De todos os países, somos aquele com menos alunos a atingirem a nota máxima nos exames do PISA. Apenas um em cada quatro portugueses – diz a GFK, empresa especialista em estudos desta natureza – crêem que a sua situação pode vir a melhorar para o ano; no pessimismo, só os japoneses nos ultrapassam.

O nosso auto-retrato não é feliz, não pode ser feliz: para o concluir, bastaria ter assistido à bem concebida série de António Barreto e Joana Pontes, Portugal: Um Retrato Social, exibida no início do ano no canal público. Um estudo, porém, chamou-me, entre os demais, a atenção. Nele se dizia que um em cada dez portugueses “considera bom um governo militar”. Tal resultado, mais que qualquer outro aspecto, coloca a nu o falhanço da democracia portuguesa, na sua forma e prática actuais. Os próprios deputados, quase um em cada três, considera que se perde muito tempo em democracia com questões sem importância.

Tome-se, por exemplo, a discussão, no Parlamento, há uma semana, sobre os sucessivos ataques do Governo às várias liberdades dos cidadãos. O Governo e o PS responderam criticando o PC, por exemplo, pela recente expulsão de Luísa Mesquita, numa variante do ataque ad hominem – falácia argumentativa simples e frequente. Quando o PSD, por sua vez, investiu, o PS lembrou que a Madeira era “um jardim de exemplos da falta de democracia”. Tudo quanto os socialistas apontaram, somos forçados a reconhecê-lo, tem a sua razão – sucede, porém, que ignoraram totalmente, nas suas respostas, as críticas que lhes foram dirigidas. Quando um assunto desta importância resvala para uma mera troca de galhardetes entre as diferentes bancadas, é caso para, parafraseando Hamlet, exclamar: “Algo está podre na República de Portugal!”.

Perante esta des-mocracia, esta negação da verdadeira democracia, é natural, mas alarmante, que as pessoas comecem a considerar a possibilidade de um regime forte. A única maneira de combater esta tendência errada é credibilizando este moribundo regime, doente às mãos quer de uma elite política oportunista, quer de um povo comodista. A democracia está mal – mas o mal não está na democracia. Não nos esqueçamos, como dizia Churchill, que “a democracia é a pior forma de governo – se excluirmos todas aquelas outras formas que, de tempos a tempos, vão sendo experimentadas”.

Mulheres Seminuas e Verdades Cruas


A Juventude Socialista (JS) tem um novo outdoor. O objecto, espreguiçado por alguns amargurados metros quadrados, proclama pomposo sobre um fundo azul: “Desde 2005 mais de 54.300 estágios profissionais”. No canto inferior direito, ao lado de uns bonequinhos coloridos e dançantes, lê-se: “O futuro já começou”. A ocupar o lado esquerdo do cartaz, há um rapaz contente, abraçando pela cintura uma loira e uma morena. Dalguma forma, este outdoor é o símbolo final da política moderna. Passo a explicar.

Os partidos, sob recomendação do omnívoro capitalismo, converteram-se em empresas. As declarações de Menezes na semana passada, defendendo que o PSD deve “profissionalizar-se, passando a funcionar como uma empresa”, constituem uma imaculada expressão do tempo presente. Tendo um produto a vender – o programa político –, a empresa-partido recorre ao marketing para o divulgar junto dos clientes e consolidar a sua posição no mercado: assim se explica o outdoor da JS, a meio do mandato do mandão Sócrates, louvando as “vitórias” do executivo rosa. Mesmo aqueles sem qualquer formação na área da publicidade não ignoram que, numa sociedade infantilmente sexual como a nossa, a presença de uma figura feminina atractiva num anúncio é um artifício popular para promover o produto – exemplo disso é a última e parva campanha da TV Cabo, em que os serviços oferecidos pela empresa surgem encarnados em três raparigas que se querem de boas formas curvas. No outro dia, de resto, indo às compras com um amigo meu, até nas embalagens de queijo encontrámos uma imagem de uma mulher em biquini. Seguindo pois os mais eficazes métodos da publicidade, a JS, como boa empresa, resolveu colorir o cartaz com a já mencionada imagem do rapaz feliz em dupla companhia feminina. O partido que foi responsável pela criação, no tempo de Guterres, de um Ministério para a Igualdade, cola pelo país outdoors de um explícito machismo, denegrindo a mulher à condição de produto físico. Graças a Deus que os partidos não têm vergonha.

Empresas que são, necessitadas de vender, os partidos recorrem, para alargar a sua quota de mercado, a par e par com as mulheres seminuas, às semi-verdades, quando não mesmo à mentira. Isso, de resto, é uma prática comum nesse habitat: Durão Barroso veio ainda recentemente declarar sobre a famigerada Guerra do Iraque que “houve informações que me foram dadas, a mim e aos outros, que não corresponderam à verdade” – antes que Durão o tivesse reconhecido, já a realidade o confirmara há muito, infelizmente. O cartaz da JS obedece a estas técnicas de ocultação da verdade, amigas da publicidade. Eufóricos, os pupilos socialistas rejubilam com as medidas em prol dos jovens (dizem no seu site), com os 54.300 estágios (!) profissionais do cartaz. Esquecem deliberadamente os dados recentemente revelados pelo Instituto Nacional de Estatística. Segundo este, a taxa de desemprego – que se situa já nos 7,9% - subiu entre aqueles com menos de 35 anos. De acordo com a mesma fonte, a grande maioria dos 106 mil empregos que o governo reclama ter criado, por exemplo, só foram possíveis graças ao acentuado crescimento dos contratos a prazo: os contratos sem termo, pelo contrário, reduziram-se. Seria contudo estranho pedir aos jovens outro comportamento, quando o governo do seu próprio partido envereda pelas mesmas tácticas. Ainda na sexta, o Tribunal de Contas veio denunciar como, através de uma metodologia manhosa, o Ministério da Saúde apresentou resultados assaz positivos, quando, na realidade, a situação do Serviço Nacional de Saúde se deteriorou. E estas são verdades cruas que nenhum cartaz consegue disfarçar.

P.S.: Na impossibilidade de se encontrar o cartaz da JS para ilustrar este post, servimo-nos, em homenagem ao título, do anúncio da Channel com a nossa amada Keira Knightley -perdoem-nos.

Ensaio Sobre a (Má-)Criação

Coisa estranha, a criação artística: ninguém adivinha os favores com que conquistar a caprichosa inspiração – o seu orgulho não se deixa dobrar com preces. Como em peregrinação ao santuário dela, vagueava, perseguindo-me, em círculos pelo quarto, sem que com isso procurasse aquecer-me contra o novo frio (como Garrett insinua na abertura das Viagens), antes buscando assunto para a crónica, como o movimento procriasse ideias. Hábito caricato. Herdámo-lo, quiçá, dos alunos peripatéticos de Aristóteles, que caminhavam em diálogo com o mestre pelos pórticos jardinados do Liceu. A divagar, dizem, se vai ao longe – literalmente, se os pés acompanharem a cabeça. Nem no espaço, nem na imaginação, porém, eu avançava, enquanto circum-navegava os cantos do meu quarto. Índios americanos, esperamos que a nossa dança circular nos traga a chuva da inspiração. Perante a aparente esterilidade da técnica, recordei em desespero as palavras de um amigo meu, que proclamava ser necessário violar a musa, talvez inspirado por um conto dessa seminal série da banda desenhada que é Sandman.

Não é, vê-se, coisa simples, a criação. Que o diga João Botelho ou Alexandre Valente, os protagonistas do escândalo que rebentou em torno de Corrupção, filme que estreia amanhã no nosso Cine-Teatro. O produtor, Alexandre Valente, descontente com a montagem final de João Botelho, o realizador, arrogou-se o direito de proceder a uma nova montagem, mais curta. Face a isto, o realizador exigiu que o seu nome não fosse creditado. O produtor, esse, alegre, tem vindo defender-se descomplexado para a televisão, sem entender o profundo ridículo de que se vai cobrindo aos olhos da comunidade cinéfila: receio mesmo que não encontre nenhum realizador para um próximo projecto. Alexandre Valente gaba-se de ter tornado o cinema numa mera mercadoria, como a arte fosse plasticina ou uma wikipedia, moldável por quaisquer mãos.

O que, contudo, mais me entristece é o facto de as pessoas pactuarem com esta fraude. É bem possível que o arrogante produtor alcance o seu objectivo: que Corrupção seja o filme português mais visto de sempre. Se, suponhamos, um vendedor de arte modificasse uma tela, de imediato esta ficaria excluída de qualquer leilão. É pois caso para repetir a recente pergunta do realizador Pedro Costa: “Porque não exiges do cinema o mesmo que exiges à pintura ou à arquitectura?”. Ninguém admira um Siza Vieira para relaxar – continuamos, porém, a teimar ver o cinema como mero entretenimento e não como arte. Tenho sempre o hábito de ficar até ao final do genérico do filme na sala de cinema, quando já as luzes se acenderam e as senhoras da limpeza arrumam as pipocas mortas no chão: de alguma forma sinto que, permanecendo ali, olhando o desfile dos nomes de quantos participaram na construção da obra, lhes presto homenagem. Ai!, tempo triste, este, em que as pessoas, bem pelo contrário, indiferentes a isso, acorrem até às salas para ver um filme sem assinatura.

A prepotente atitude de Alexandre Valente é um gesto óbvio de má-criação, no duplo sentido da palavra: por um lado, manifesta um desrespeito enorme pelo realizador e pela Arte; por outro, porque é, muito literalmente, uma má criação, um péssimo produto, que alicerça o seu sucesso na polémica em torno do livro que lhe deu origem e nas cenas de sexo, essenciais hoje a qualquer filme português que procure o sucesso comercial: nisto descamba o capitalismo artístico. Nisto e na justa greve que os argumentistas americanos iniciaram na semana passada contra os grandes estúdios e cadeias de televisão e que põe em risco, por exemplo, séries tão bem-amadas como Lost ou 24. Entre outras coisas, exigem os argumentistas – e bem – que as empresas partilhem com eles os lucros resultantes das vendas de DVDs.

Com filmes como Corrupção, para quando a greve dos espectadores?