25 August 2007

O Despertar da Mente

Entre os leitores deste texto, algum porventura mais cinéfilo terá reconhecido no nome da crónica o título do penúltimo filme de Michel Gondry, estreado em 2004, com Jim Carrey no papel principal. O famoso actor interpretava nessa película Joel, um homem que, desiludido com o fracasso da sua última relação amorosa, resolve recorrer aos serviços de uma novíssima empresa dedicada à eliminação de memórias com o objectivo de apagar todas as recordações da mulher que amara e assim ultrapassar a dor que o acomete.

Vem a referência cinematográfica a propósito de uma breve notícia, já do mês passado. Assuntos mais urgentes, contudo, adiaram o seu tratamento aqui neste espaço crocitado. Segundo o Público, então, uma equipa da Universidade do Colorado terá concluído, em estudo publicado na Science, que “as pessoas conseguem suprimir memórias específicas num dado momento, através de um treino repetitivo”. Se o jornalista sublinhava as eventuais utilizações positivas da descoberta – por exemplo, para as vítimas de stress pós-traumático –, menos optimista foi a minha reacção, que na novidade descobria um potencial perigo.

Já o brilhante Borges, na sua História da Eternidade, relembrava: “Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia”. Para Platão, tudo era, de resto, reminiscência. A nossa identidade reside, efectivamente, no nosso passado, o operário do nosso presente. Apagar memórias, por desagradáveis que sejam, é um exercício de amnésia, de desfiguração do eu. Freud demonstrou como acontecimentos desagradáveis, recalcados na ânsia de esquecer, acabam por influenciar o comportamento. O psicanalista esforçava-se, nas suas palavras, por substituir o id pelo ego, trazer o inconsciente ao consciente: só deste modo o doente compreenderia as causas profundas dos seus medos e desejos. Ousa-se agora o contrário: recalcar essas memórias ao extremo de apagá-las.

Se, de facto, o que distingue duas pessoas é, essencialmente, as suas memórias, então, alguém a quem se elimine uma lembrança não é, por certo, depois da operação, a mesma pessoa que era antes: passa a ser alguém diferente, digno mesmo de outro nome. Há, nisto tudo, também um sinal da progressiva e maior assimilação do homem à máquina: tal como num computador, eliminam-se “ficheiros” do cérebro humano. Receio passarmos a ter semipessoas, preenchidas de lacunas; pessoas felizes somente porque esquecem, como os tristes lotófagos da ilha onde Ulisses desembarcou no seu périplo errante, narrado na Odisseia.

Este é, de resto, um tempo que valoriza o esquecimento e a tudo dá prazo de validade, atitude perigosa, pois o passado é a chave para perceber o presente e prevenir o futuro. A memória é um dos cinco pontos cardeais da essência da Europa, na opinião de George Steiner, que a define como lieu de la mémoire no seu importante ensaio A Ideia de Europa. Pude comprová-lo na minha ida a Paris, em inícios do mês: as ruas enchiam-se de lápides relembrando quantos tinham tombado em defesa da cidade na Segunda Guerra Mundial. Deparei-me mesmo com uma inscrição dessas que celebrava “um francês”, caído no sítio onde se erguia a placa: nem sequer lhe sabiam o nome, mas persistiam em relembrá-lo, todavia.

Esta contracorrente, insistindo em recordar num tempo de esquecer, anima-me. Para concluir, recorro a essa linguagem verdadeira que desaprendemos com o tempo: a mitologia. Um dos dois corvos de Odin, deus primeiro do panteão nórdico, chamava-se Memória. O par de pássaros era o símbolo da sua omnisciência. Julgo a alegoria decifrada.

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte III

Concluímos nesta crónica a enumeração das figuras que representam, pelas suas acções, uma ameaça para a sociedade aberta. Os seus dois detractores que aqui apresentamos têm em comum a tentativa – inédita entre os demais que aqui temos vindo a indicar, cujos poderes, escassos, tanto não permitiam – de controlar/silenciar os media, o dito “quarto poder”.

4) Rui Rio, Presidente da Câmara do Porto. Reconhecemos ser estranho, num jornal local, criticar a actuação do presidente de uma câmara que nem pertence ao nosso distrito. Perdoe-nos o leitor esta pequena heresia, mas sentimos que, na lista que temos vindo a fabricar, a omissão de Rui Rio descredibilizá-la-ia, porquanto isso equivaleria a encobrir alguém que, pelo seu comportamento, provou já repetidamente não aceitar com especial agrado o exercício da liberdade. Alguns, dotados de memória – um bem cada vez mais raro e subestimado hoje –, lembrar-se-ão de quando o presidente da câmara do Porto atribuiu subsídios aos agentes culturais da cidade mediante a condição expressa de estes não criticarem o executivo camarário: ei-la!, a lealdade, de novo, tão querida aos inimigos da sociedade aberta! Também antigo é o diferendo mantido com o Jornal de Notícias e o Público: contra-ataca o primeiro no site oficial da câmara e o segundo nos “direitos de resposta” que, ao abrigo da lei, faz publicar; ambos em termos tão aguerridos que devem, ao observador atento, causar desconfiança. Esta não disfarçada “oposição à oposição” ganhou atenção mediática, porém, quando, no dia seguinte ao da manifestação “silenciosa” frente ao Rivoli, o site da câmara publicou um texto, onde noticiava, em tom nitidamente crítico, a participação de David Pontes, director adjunto do JN, no dito cujo protesto. O facto de um munícipe, no exercício legal dos seus direitos de cidadania, ser denunciado no site camarário – uma aberração numa sociedade aberta – parece, contudo, inteiramente justificável a Rui Rio, porque «pode ajudar a explicar muita coisa». Certamente que sim: explica toda a razão que o JN tem nas críticas que tece a este executivo. Porém, mais revoltante é que, sem consentimento do próprio, David Pontes foi filmado a participar na “manif” e o vídeo foi colocado online, a acompanhar a notícia que registava o caso no site. Este gesto representa um atropelo inominável de um dos mais básicos direitos do sujeito: o direito à imagem. Há algo de Big Brother na atitude. Note-se, por fim, que, apesar de o site da câmara criticar o director adjunto do JN pela participação na manifestação, não se faz qualquer referência à realização desse mesmo protesto, que contou com mais de mil pessoas. Confusos? Nós, pela nossa parte, estamos bastante elucidados.

5) José Sócrates, Primeiro-ministro. Sócrates figura nesta lista por demérito próprio e não apenas pela complacência para com os “erros” dos seus ministros que demonstrou no último sábado no Parlamento: o debate foi profundamente revelador ao não revelar nada. O engenheiro sem Ordem pôs ainda em tribunal, recentemente, o autor do blogue Do Portugal Profundo, aparentemente por difamação e denúncia caluniosa. O assunto da licenciatura de Sócrates, continuando nebuloso, mostrou, porém, um primeiro-ministro que, na ânsia de afastar de si as suspeitas, acabou por se contradizer (logo quando mandou retirar, do site do Governo, o título de engenheiro) e contradizer também documentos que depois vieram a público, falhando em esclarecer o caso completamente. Porém, eis agora António Caldeira, que sempre deu a cara – ao contrário de tantos outros –, processado, por ter, com a questão da licenciatura, destruído, definitivamente, o estado de graça do primeiro-ministro. Que Sócrates procura refrear os media vê-se, por exemplo, no novo Estatuto dos Jornalistas. Nesta «festa da democracia», espero eu, agora, não levar também com um processo em cima! ■ o corvo