10 July 2007

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte II

Continuamos a listagem não exaustiva já iniciada na crónica anterior das figuras mais proeminentes que, de alguma forma, ameaçam a sociedade aberta e livre como a conhecemos.

3) António Fernando Correia de Campos, Ministro da Saúde. O afastamento da ex-directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, Maria Cardoso, é mais uma manifestação da acentuada sensibilidade do actual executivo. De acordo com o despacho da exoneração, Maria Cardoso foi demitida “por não ter tomado medidas relativas à afixação [...] de um cartaz que utilizava declarações do Ministro da Saúde em termos jocosos, procurando atingi-lo”. Não se acrescenta, contudo, que, por sua vez, essas “declarações do Ministro da Saúde” ofendiam os profissionais daquele serviço. O cartaz em questão reproduzia uma entrevista concedida por Correia de Campos ao Jornal de Notícias, a 6 de Agosto de 2006, onde este declarava: “Nunca vou ao SAP, nem nunca irei! [...] Porque não têm condições de qualidade. Têm um médico e um enfermeiro e conferem uma falsa sensação de segurança.”. As bases devem respeitar as chefias; estas, porém, podem livremente desdenhar do trabalho dos seus dependentes.

A lealdade – conceito importante em que os adversários da sociedade aberta baseiam as suas invectivas – funciona num só sentido. Não se espante, considerando os traços que vimos serem próprios dos inimigos da liberdade, que Maria Cardoso tenha sido acusada pelo ministro precisamente de “deslealdade”, por não ter prontamente mandado retirar a entrevista. Por outro lado, num exercício de obstinada lealdade, um membro da Juventude Socialista denunciou o caso aos seus superiores, que, depois, fizeram chegar a notícia às cúpulas. É caso para relembrar as palavras avisadas de Jorge Coelho: “Quem se mete com o PS, leva!”.

Outro pormenor que merece destaque é o facto de Maria Celeste ter sido pressionada para abrir um processo disciplinar contra o médico que afixara a entrevista e a rematara com um curto comentário irónico. Porém, ao contrário de Margarida Moreira, da DREN, criticada na crónica anterior, Maria Cardoso, numa atitude louvável, recusou-se a fazê-lo, sendo consequentemente demitida. Se seria ainda possível, por parte dalguns, defender que, efectivamente, não era muito correcto uma entrevista assim estar exposta num centro de saúde, é já, contudo, difícil – a partir do momento em que se percebe que a razão da demissão foi a recusa de Maria Cardoso em instaurar um processo contra o médico – não suspeitar que estamos perante um exercício de violência política.



Em defesa do ministro, a Secretária de Estado da Saúde, Carmen Pignatelli – que aqui inscrevemos no rol dos inimigos da sociedade aberta – considerou que a liberdade de expressão deve ser exercida nos “locais apropriados”, a saber, “nas nossas casas, na esquina do café (?), e com os nossos amigos”. Note-se a incorrecção das palavras, porquanto o professor Charrua foi precisamente denunciado por um “amigo”. Muito segura das suas afirmações, sem pudor, exclama: “não tenhamos vergonha de dizer isto”. Não tenhamos nós, de facto, vergonha de dizer isto: a liberdade está a ser, já nem muito veladamente, ameaçada, por comportamentos dos seus opositores como os acima descritos. Ao caso Vieira do Minho, como este já foi apelidado, vem-se juntar o de Fernando Portal, alegadamente afastado, ao fim de dezassete anos, da presidência do hospital de S. João da Madeira por críticas à política de encerramento das urgências do ministério, caso que remonta já a Maio. Pouco a pouco, vai-se revelando a verdadeira natureza deste ministério que de saudável, sinceramente, tem pouco.
o corvo

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte I

O título da nossa crónica remete para o conhecido livro homónimo de Karl Popper, escrito durante a II Guerra Mundial, onde o filósofo procede a uma crítica implacável daqueles que considera serem os ideólogos do totalitarismo e opositores das democracias liberais. Inspirados pelo exemplo, e porque a nossa sociedade livre, filha do 25 de Abril, está hoje sob ataque cerrado, procedemos no seguinte texto a uma identificação dos seus principais inimigos.

1) Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte. Nela, traço recorrente dos adversários da sociedade aberta, o ódio à liberdade surge associado à megalomania: José Manuel Fernandes, director do Público, com doce ironia, afirma que a de Margarida Moreira é «proporcional ao seu volume». Assim, a Directora da DREN, como protectora dos oprimidos, na sua importante entrevista ao DN de dia 14, reconhece que quebra o silêncio apenas porque sente ser sua “obrigação” defender a instituição que coordena e os que nela trabalham. O discurso de Margarida Moreira é ainda, como seria expectável, pautado por súbitas, mas coerentes, manifestações de apoio a práticas autoritárias. «Defendo uma liderança forte», confessa. A entrevista tem este duplo mérito de, por um lado, permitir a análise do perfil psicológico do inimigo típico da sociedade aberta, por outro, de fornecer dados relevantes para uma análise mais profunda do “caso Charrua”. Margarida Moreira afirma ter sido avisada do insulto de Charrua, primeiro, por SMS, depois, por meio de uma participação escrita. Quanto mais dados emergem sobre este acto bufão, tanto mais detestável ele se torna a qualquer espírito livre – apenas aos inimigos da sociedade aberta ele não repugna; não transparece, de facto, uma única nota de condenação nas palavras de Margarida Moreira. Pelo contrário, a própria parece sugerir que quem, por exemplo, num contexto desportivo, insulta os árbitros, deve também ele ser punido. Os resultados do processo disciplinar movido contra Fernando Charrua foram entretanto revelados. Este é acusado de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres gerais de lealdade e correcção». No tempo de Salazar, era também preciso ser-se leal: declarava-se mesmo, por segurança, «activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». Sobre este caso, ainda, acrescente-se que é particularmente sintomático que o mesmo insulto (“filho da p...”), quando dirigido ao primeiro-ministro, num ambiente privado, resulte num processo disciplinar; quando dirigido aos jornalistas, frente às televisões, por Alberto João Jardim, seja saudado com a permissividade do costume.

2) Maria de Lurdes Reis Rodrigues, Ministra da Educação. Esta mostrou a sua clara conivência com a actuação de Margarida Moreira ao reconduzi-la no cargo, em despacho também assinado pelo primeiro-ministro, a 5 de Junho. Ao fazê-lo, incorre em todos os crimes de que a outra é acusada no tribunal da liberdade. A Ministra, enquanto superiora política, terá ainda de se justificar pelo estranho afastamento da Associação de Professores de Matemática (APM) da comissão de acompanhamento do Plano da Matemática. Aparentemente, sob pressão repetida de um seu subordinado, Luís Capucha, a APM viu-se forçada a abandonar a já referida comissão em consequência das críticas que teceu publicamente ao funcionamento desta. Note-se que tropeçamos, de novo, no dever de “lealdade” – já invocado no processo de Charrua – que parece proibir críticas aos órgãos para os quais se trabalha ou com os quais se colabora, sob pena de afastamento dos mesmos. É próprio dos inimigos da sociedade aberta, por um lado, refugiarem-se no silêncio, fugindo às críticas, por outro, incentivarem-no, porquanto assim nem críticas há. Assiste-se à apologia do silêncio quando o exercício da liberdade se faz pelo uso da palavra. A prepotência, que isolámos já enquanto traço distintivo do adversário da liberdade, reencontramo-la na Ministra que, muito recentemente, ao ser confrontada com o acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucional a repetição dos exames no ano passado, afirmou que voltaria a tomar a mesma medida. Em suma, inimiga da liberdade – e da razão.
o corvo

Os "G " Feitos Num 8

A cimeira dos G8, em Heiligendamm, na Alemanha, concluiu-se, enfim. Se alguma atenção os media lhe concederam, isso fica-se a dever não tanto ao trabalho dos políticos ali congregados, mas às manifestações violentas de alguns protestantes anti-globalização. Curioso é que, pesadas as verdades, no fim destes encontros, que, pouco a pouco, se foram infiltrando no quotidiano anual do mundo ocidental, ambas as partes ganharam o mesmo, que foi terem perdido. De facto, os líderes que, ritualmente, se reúnem, já provaram ter tanto sucesso nas suas aspirações quanto os manifestantes estão perto de travar a globalização e destruir o capitalismo.

O conclave dos ricos anunciou sexta-feira ao mundo que contribuiria com sessenta mil milhões de dólares para a luta contra a sida, a tuberculose e a malária em África. A declaração, porém, omitiu, convenientemente, o pormenor de que metade desse dinheiro virá dos EUA, que já antes tinham prometido essa ajuda. O texto não remete também para nenhuma data em concreto. Um prazo, contudo, tinha sido estabelecido na cimeira dos G8, há dois anos (por altura do celebrado Live Eight). Então, os governos haviam prometido duplicar a ajuda ao desenvolvimento africano até ao final da década. A verdade cruel, todavia, é que, ao invés, essa ajuda tem vindo a decrescer depois de 2005. Que necessidade há pois que se juntem agora para renovar a mentira das edições anteriores? De boas intenções, arde o Inferno.

Os oito companheiros manifestaram ainda – dizem os jornais – a sua preocupação com a situação ignóbil do Darfur, apelando a que os autores das “atrocidades” sejam julgados. O frenesim eufemístico da política moderna! No Darfur está em curso um genocídio: e por esse nome a Morte deve ser convocada. Os líderes das grandes potências, mais uma vez jogando com a ambiguidade da indefinição, prometeram ainda novas medidas contra o Irão, caso este não suspenda o seu programa nuclear. A avaliar pelo cumprimento de outras promessas do grupo, Ahmadinejad, o polémico presidente do Irão, poderá continuar calmamente a brincar à destruição de Israel, à qual já este mês se referiu novamente. O tom irónico destas palavras não deverá ocultar a gravidade da situação. Os G8 abordaram, de facto, questões essenciais: simplesmente, recuperando a sentença dos velhos Gatos, “falam, falam mas não fazem nada!”.

Claro que, naturalmente, não é fácil atingir um consenso quando um dos elementos de peso dos G8, a Rússia, por um lado, de acordo com a Amnistia Internacional, tem fornecido armas ao Darfur, por outro, sistematicamente, veta sanções que o Conselho de Segurança da ONU tem tentado impor ao Irão. A Rússia é, cada vez mais, uma peça central no xadrez do mundo: ainda há uma semana, ameaçou apontar mísseis a alvos europeus. O Kremlin parece, no entanto, ser assaz querido ao nosso primeiro-ministro, o qual foi recentemente à Rússia. O aspecto mais mediático desta deslocação toda foi, certamente, o jogging de Sócrates. O fait-divers não nos deve distrair, contudo, das suas afirmações, que não auguram nada de bom. “Ninguém queira começar a dar lições seja a quem for”, disse. Se há algo a que sou sensível, e me repugna com especial fervor, é a hipocrisia. Dói-me que Sócrates faça tábua rasa dos atropelos constantes do regime de Putin aos direitos humanos. Justificadamente, a delegação russa da Human Rights Watch exprimiu já a sua indignação com as afirmações do Primeiro. São as opções éticas do nosso bem-amado governo. Porém, igual indignação me causou a posição do Partido Comunista relativamente à censura de que foi alvo a RCTV, canal venezuelano, oposto ao regime, a que o presidente Hugo Chávez não renovou a licença de emissão. O PCP, no seu site, defende nitidamente a medida – coisa triste, muito triste.

O mundo enferma e, entre os sorrisos das fotografias, ninguém tem a coragem da chapada necessária. ■ o corvo

Anedota Triste

Há, entre a democracia e a ditadura, um amplo espectro político que aceita desvios a alguns traços-base de cada um desses dois regimes sem que, por isso, um se transforme no outro. Assim, a efémera primavera marcelista, não obstante certas liberdades arriscadas, era, ainda, um autoritarismo. Do mesmo modo, o regime de Putin, na Rússia, permanecendo uma democracia, contempla, porém, com vertigens (que induzem a queda), o precipício da ditadura. Ora, se Moscovo está já no final desse nebuloso espectro que separa os dois regimes, Portugal, longe ainda, inicia-se nessa travessia obscura, timidamente – ou não.

Muitos indícios têm vindo a acumular-se que confirmam esta suspeita, porém, nenhum tão vergonhosamente explícito como a recente suspensão de um funcionário da DREN (Direcção Regional de Educação do Norte): Fernando Charrua, professor de inglês (sinto-me tentado a um “comentário jocoso” envolvendo o termo “inglês” e uma alusão sub-reptícia à licenciatura do primeiro-ministro: o exemplo alheio cala-me as palavras), ex-deputado do PSD. Este, em conversa privada com um colega, terá feito um piada sobre o curso de Sócrates. Um outro funcionário, contudo, tendo ouvido a observação satírica, relatou a anedota à directora do serviço, Margarida Moreira. Esta tomou as medidas “adequadas”. No dia seguinte, chegado ao emprego, o professor tinha o computador bloqueado, o e-mail fora lido e ele estava suspenso.

Há um pormenor, em todo este caso, que me choca quase tanto quanto a suspensão em si de que foi vítima o professor, a saber, o facto de o e-mail de Charrua ter sido devassado. Isto é próprio de regimes totalitários. Quando se atinge estes extremos, é porque eles já não existem – tudo é válido. Declaro aqui, solenemente, que já não confio no Estado. O seu longo nariz (de pinóquio, de tanto mentir) intromete-se em todo o lado. Bem-vindos à “claustrofobia democrática” que Paulo Rangel denunciava no 25 de Abril.

Margarida Moreira justificou a suspensão por “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”. Gostava, sinceramente, de perceber esta última afirmação, pois não consigo (e já puxei muito pela cabeça, ao ponto de a ter arrancado) entender como pode uma piada rápida perturbar a DREN. Ai, que maquilhagens da verdade inventam! E, clarifique-se, é aqui irrelevante para o caso se se tratou mesmo de um “comentário jocoso” ou de um insulto: se alguém, de resto, tinha de apresentar queixa, era o visado, o próprio primeiro-ministro.

Este, para “serenizar” os portugueses, veio dizer – cinco dias depois! – que ninguém será sancionado pelo exercício da liberdade de expressão. Comentava Constança Cunha e Sá no Público que um primeiro-ministro ter de vir dizer isto transparece muito do actual clima. A ministra da educação, que recusa ir ao Parlamento, e o seu ministério têm procurado fugir à polémica. Maria Lurdes Rodrigues confessa não ter “nenhum sinal ou motivo para duvidar do [...] correcto funcionamento [...] da DREN e dos seus serviços”. Porém, o ministério está também envolto no escândalo. A 26 de Abril, o secretário-geral da educação assinou o despacho de suspensão de Fernando Charrua. Ao contrário da ministra, eu tenho razões para duvidar não só do funcionamento da DREN, mas da 5 de Outubro.

O outro Sócrates, o verdadeiro, morreu por falta de liberdade de expressão; o regime do novo, asfixia-a: a sua popularidade continua, porém, em alta. Ficaremos calados a assistir? É nosso dever reflectir no que, democraticamente, está ao nosso alcance fazer. A Declaração da Independência dos EUA diz que as pessoas estão dispostas a aceitar os erros de um governo enquanto estes forem suportáveis, mas que, atingido um certo ponto, revoltam-se. Questiono-me se faltará muito, por este caminho, para aí chegarmos... ■ o corvo