29 April 2007

Novos Oportunismos


Há, em Fight Club, essa icónica antologia satírica do mal de vivre finissecular, uma cena em que o protagonista, Tyler Durden, com uma pistola apontada à cabeça de um pequeno lojista, depois de este ter confessado que abandonara, por falta de empenho nos estudos, o seu curso de Biologia (a sua ambição era ser veterinário), ameaça o homem de morte caso, nos próximo dias, ele não reentrasse na Universidade e prosseguisse aquele seu emprego menor, em detrimento do seu sonho, que deixara por preguiça. Idílico, Tlyer termina: “Raymond K. Hessel, amanhã será o dia mais belo da tua vida. O teu pequeno-almoço vai saber melhor do que qualquer refeição que alguma vez tomaste”.

Evoco a cena à laia de prelúdio de uma breve reflexão sobre a mais recente campanha do Governo, Novas Oportunidades. Nela – como alguns, por certo, terão já observado, ainda que, tanto quanto me foi dado ver (mas eu também sou distraído), nenhum cartaz tenha sido afixado na nossa cidade – personagens célebres aparecem em profissões vulgarmente consideradas menores, tentando-se apresentar isso como consequência da não prossecução dos seus estudos. Assim, naquele que é talvez o cartaz mais divulgado, Judite de Sousa aparece numa banca de jornais com a legenda “Esta é a Judite Sousa que não acabou os estudos”.

Os anúncios rapidamente causaram celeuma. Manuel Alegre, indignado, chamou a atenção para a forma como ostensivamente se desvalorizavam certas profissões, representando os que as desempenham como perdedores. Se o objectivo da campanha – a luta contra o abandono escolar – é, certamente, louvável, o mesmo não se passa com o método escolhido. Como comentou José Diogo «Gato» Quintela, na sua crónica dominical no P2, esta campanha é a modos que «abrutalhada». No fundo, Tyler Durden no Fight Club e o Governo parecem padecer dos mesmos vícios de comunicação, mau grado as suas boas intenções. Não é isso que, porém, mais me choca, embora também partilhe das reticências expressas pelo deputado-poeta.

Aquilo que me irrita no cartaz é a associação simples entre estudos e sucesso. Primeiro, porque, como todos nós sabemos pelos mais variados exemplos do quotidiano, muitos são os que, sem acabar o curso, triunfam nas suas áreas e tantos outros os que, tendo o «canudo», estão longe da excelência dos primeiros. Segundo, porque aqueles que hoje cursam sabem não ter – quantas vezes! – lugar no mercado à sua espera. Magoa-me particularmente o anúncio com Pedro Abrunhosa, em que este aparece como mero arrumador de uma sala de espectáculos – é que, há cerca de um ano, a revista económica Dia D dedicou uma reportagem aos jovens licenciados que, para susbsistirem, aceitavam empregos fora da sua área e uma das entrevistadas, precisamente, ganhava a vida a indicar os lugares num qualquer teatro.

É esta mentira suprema que me revolta. A ordem natural das coisas parece mesmo funcionar ao contrário: se os que completam os estudos trabalham atrás de balcões e em cinemas, os que não os completam, ascendem, se necessário, até às cúpulas. Estas mentiras e incoerência do Governo, porém, são mais amplas. Veja-se: o partido que, por meio do Ministério da Justiça, num guia lançado depois do 25 de Abril, incentiva os funcionários a denunciaram casos de corrupção, é o mesmo que, poucos dias antes, recusou, na Assembleia, pela terceira vez, a criação do crime de enriquecimento ilícito. Isto tem, na terra em que eu cresci, o nome de hipocrisia. Como hipócrita é o discurso de austeridade do Governo: não porque, per se, seja errado, mas porque é inconsistente, como bem demonstrou o Tribunal de Contas, que voltou a criticar as nomeações excessivas do Executivo. São os “jobs for the boys”!

Novas oportunidades? Novos oportunismos! o corvo

24 April 2007

Nacionalismos

Madrugadores pontuais da cidade despertante notavam, frente à Câmara, o autocarro. Pormenor intrigante do invulgar cenário, algumas dezenas de jovens deambulavam em torno do transporte verde. Pouco depois das oito, embarcavam ordeiros e a camioneta arrancava. Assim começava para eles o Dia da Defesa Nacional. Para aqueles porventura mais estranhos ao assunto, diga-se que esta jornada veio substituir a antiga recruta e a sua obrigatoriedade estender-se-á para o ano às raparigas. Mancebo enfim maior de idade, acompanhei esta leva.

Não é minha pretensão proceder aqui a uma descrição exaustiva do dito cujo dia, sobre o qual, entre os jovens, correm as mais variadas anedotas reais. Infelizmente, a minha visita ao Aeródromo de Maceda (Ovar) não foi tão profícua em casos e ditos caricatos. Relembro, contudo, a explicação dada por uma militar para a proibição do consumo de bebidas alcoólicas na messe: «antecedentes negativos» – gosto de imaginar o que o eufemismo pode encobrir. A mesma precaução suponho que tenha presidido ao aviso do militar que, antes do hastear da bandeira, nos pediu que, solenemente, não nos ríssemos. O público, esse, só manifestou sincero interesse, no seu nacionalismo de mercenário, na sessão da tarde, dedicada às questões fundamente práticas, leia-se, aos agradáveis salários e confortáveis vantagens de uma carreira de armas. De resto, desinteressadamente suportámos o Dia nublado.

Pouco tempo volvido sobre esta experiência, na longe Lisboa, como que em resposta a esse nacionalismo tépido, o PNR col(oc)ou um cartaz no Marquês, destinado à polémica. Lembro-me de, no Secundário, agarrar um pequeno papel que afincadamente dois jovens distribuíam à saída. Só depois de atravessar a passadeira olhei para o impresso, com uma reprodução da estátua de D. Afonso Henriques e palavras de ordem semelhantes às do cartaz do PNR. Voltei-me veloz para trás, porém não vi já o que desejava descobrir. Atrás de mim, tinha vinha uma rapariga de cor: quanto não gostava de saber se também lhe distribuíram o flyer!

Se narro este pequeno episódio, é apenas para reforçar a ideia de que, longe de ser um fenómeno novo, este nacionalismo anacrónico e desproporcionado tem-se vindo a instalar entre nós lentamente e – aqui reside o busílis do problema – entre grupos jovens. Disso é sintomática a criação, em 2005, da Juventude Nacionalista (JN). O mal, porém, é geral. Há coisa de dois meses, por exemplo, recebi um mail alertando para supostos raptos de crianças por chineses nas suas lojas. Isto é tão xenófobo como o outdoor de José Pinto Coelho e dos seus. Porém, muitos persistem em repassar estas mensagens mentirosas.

Animado pela recente vitória de Salazar n' Os Grandes Portugueses e com a polémica em torno do Museu em Santa Comba Dão, o nacionalismo radical vai ganhando espaço público. Mesmo na Covilhã, onde fui passar a Páscoa, encontrei num mural alusivo ao 25 de Abril a seguinte inscrição, que vim mais tarde a saber, por meio de uma reportagem do Público, ser da autoria da JN: “hipocrisia censurar opiniões”. A frase podia estar gravada no segundo cartaz do PNR na rotunda do Marquês, que recorre a igual defesa. Sinceramente, concordo que mesmo partidos com opiniões desta natureza não devem ser proibidos de expressar os seus pontos de vista, pelo que o vandalismo de que foi alvo o primeiro cartaz me parece não só incorrecto mas também uma resposta medíocre quando comparada com a intervenção do Gato Fedorento. Contudo, o caso não é cómico, antes se reveste de andrajos trágicos, transversal a países cujo futuro inquieta: na Rússia, enquanto Kasparov era preso, uma manifestação de extrema-direita decorria sem entraves. No xadrez estranho do mundo, quem adivinhará a próxima jogada?

o corvo

04 April 2007

Quando Marilyn Encontrou Albert


Estava entre amigos, a almoçar, quando, à cabeça da mesa, alguém, espontaneamente, perguntou, entre duas garfadas descontraídas: “ viram o novo programa da TVI?”. Num só coro, as cabeças ergueram-se, como suricates, e rapidamente se instalou uma vilipendiosa troca de comentários. Ingénuo, a medo, interrompi: “Mas que programa é esse?”. Animados pelo fogo e fôlego da discussão, explicaram-me em palavras simples e curtas a essência da coisa: oito mulheres, regurgitações do estereótipo louro herdado das actrizes americanas, fechadas numa casa com oito nerds desleixados, ambas as partes tentando aprender da outra, respectivamente, a inteligência e a beleza – era esta a premissa de A Bela e o Mestre.

A descrição lembrou-me o famoso mito urbano do encontro entre Marilyn Monroe e Albert Einstein. Diz a estória que, tendo-se ambos cruzado numa festa, a diva se terá voltado para o cientista e sugeriu: “Devíamos ter um filho! Imagine se ele tivesse a minha aperência e o seu cérebro!”, ao que o físico replicou: “Imagine se tinha a minha aparência e o seu cérebro”.

Abanei a cabeça, enquanto as minhas amigas continuavam a criticar o machismo inerente à estrutura do programa. Alguns rejeitam esta crítica, afirmando que o novo reality show é igualmente preconceituoso no que toca aos homens. Porém, isso não é mais que uma falácia politicamente correcta pois se a mulher é correntemente, na sociedade materialista, pensada enquanto objecto sexual – e assim aparece retratada em A Bela e o Mestre; o homem, pelo contrário, não é concebido, no imaginário colectivo, como propriamente culto, antes, numa cultura de valorização do exterior, aparece, moldado por Hollywood, fisicamente trabalhado. Assim, o programa acaba por acentuar um estereótipo machista em relação à mulher, mas o inverso não sucede no que diz respeito ao homem.

Porém, ainda mais do que o sexismo de base do programa, inquieta-me a vitalidade do incessante e, aparentemente, infindável filão dos reality shows. Numa altura em que vividamente se discutiu, por ocasião dos cinquenta anos do primeiro canal, o serviço público, chegando mesmo algumas vozes a sugerir a sua extinção, julgo que, se há, na sua grelha, programas de qualidade duvidosa certamente dispensáveis, parte do mérito da estação reside também nos programas que dispensa, precisamente os reality shows. Este fenómeno da “tv real” confirma uma tendência que outros indícios há muito verificaram: mais e mais, desvaloriza-se a privacidade da pessoa, elemento constituitivo da sua dignidade e liberdade. É sintomático – mais, é macabro – que o protótipo de todos estes programas, o Big Brother, tenha ido buscar o seu nome ao universo totalitário orwelliano. Não é difícil, portanto, estabelecer uma ligação, por muito distantes que inicialmente pareçam um do outro, entre este fenómeno e a ressureição popular da figura de Salazar, tornada visível pelo concurso d' Os Grandes Portugueses.

Um exercício interessante, que revela bem a decadência deste género de programas, consiste em seguir o destino de cada um dos participantes depois de abandonar a mansão omnividente. Na semana passada, uma pequena notícia nos jornais sérios e um título de capa nos sensacionalistas davam conta de que “Big Mário”, participante do primeiro Big Brother, fora condenado a sete anos de prisão por roubo qualificado e agravado. Foi a pessoas como estas que metade de Portugal assistiu durante três meses! Mas, também, se é o mesmo Portugal que elege Fátima Felgueiras... ou Valentim Loureiro, o do julgamento televisivo, mais uma expressão deste conceito da “tv real”, da qual os reality shows são apenas a materialização mais bárbara. A mim, confesso, basta-me o reality show da lenta decadência nacional, transmitida em directo de qualquer telejornal, de todas as estações.