19 January 2007

A Manifestação

4 horas: é preciso amar muito Amadeo. Regozijei na leitura da capa do jornal; preenchi-me de alegria com as imagens na televisão. Amadeo não está na lista dos grandes portugueses – Amadeo teve porém consigo os portugueses. O pintor, nome maior do modernismo europeu, teve duas infelicidades: morreu cedo, nasceu português. “Um pouco mais de sol - e fora brasa, /Um pouco mais de azul - e fora além.”, escreveu o seu amigo Sá-Carneiro: tivesse Amadeo apenas nascido em França!, houvera subido, elegante e ligeiro, mais alto que tantos outros.

O que se passou na Gulbenkian foi uma manifestação. Quiçá, mais poderosa que aos protestos convencionais. Força de um fantasma do passado!, que invocado por uma evocação, convoca assim um povo. Não houve cartazes, houve quadros; não houve sindicatos, houve Amadeo – e uma revolta, marcha silenciosa, que brilhava. Uma rebeldia contra o PREC: Processo de Rápida Estupidificação em Curso. Este foi o sinal que os portugueses quiseram enviar, como estrela de Belém, de Belém a São Bento. Este fim-de-semana, os portugueses berraram, numa língua sem TLEBS, «Nós queremos ser cultos!».

(Entretanto, na telenovela TLEBS [nova terminologia linguística], o governo procedeu a uma interrupção voluntária da mesma: “deficiências” obrigam a proceder a um trabalho de revisão nos próximos anos. Registo, para a posteridade, a seguinte frase de Luís Capucha, director-geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular, em entrevista ao Público de seis de Janeiro: “Vamos sujeitar a TLEBS a um teste prático: saber se os alunos que aprenderam com a terminologia têm melhores resultados a Português. Vai ser já este ano que vamos fazer essa comparação, através dos exames do 9º e do 12º ano”. Não me rio de imediato: esperarei, calmo; como, de resto, procedi no caso da repetição dos exames – aguardando que o tempo me engorde a razão. Se, por acaso, os resultados dos exames forem superiores – saiba-se, foi só por acaso.)

Os portugueses não só querem não ser estúpidos, como não querem ser vistos como tal. E por isso manifestaram-se, na semana em que se soube que o Museu do Azulejo – o quarto mais visitado de Lisboa – é forçado no fim-de-semana a fechar ao almoço por falta de pessoal e que para essa situação caminham o Museu dos Coches e o Museu Nacional de Arte Antiga, não obstante em 2006 os museus estatais terem superado o recorde de visitantes firmado em 98, ano de Expo. Isto, para não mencionar na lista de indignações o fim, anunciado ainda no ano passado, da Festa da Música. Ou a imensa confusão que continua a rodear a colecção Berardo.

Dir-me-ão que quem esteve ali, na Gulbenkian, não foi o público da Floribella – mas foi decerto o público que não quer que o país caia nas mãos do público da Floribella. Foi uma população escondida que se revelou – que se vai revelando, discreta, quando as coisas boas aparecem, para as saborear (ah!, como me ocorre à memória o recente e excelentíssimo Hamlets encenado pelo TEUC no Gil Vicente de Coimbra!). E esta massa muda vai relembrando urgentemente que este país, que pôs na lista dos seus cem maiores Maria do Carmo Seabra – que promulgou a TLEBS, foi o mesmo que nela inscreveu o Pe. António Vieira, Vieira da Silva ou Almada Negreiros e levou ao grupo dos dez maiores Pessoa e Camões.

A semana passada, Portugal ratificou uma convenção da UNESCO com vista a proteger da liberalização do mercado os bens culturais, assim salvaguardando as manifestações artísticas locais que, doutra forma, não poderiam subsistir: haveria cinema português sem Estado? Calculo que os manifestantes da Gulbenkian, no meio do seu descontentamento, tenham sorrido com a notícia, esperançosos – e eu com eles – de um futuro melhor.

0 comments: