29 January 2007

Em Busca da Identidade Perdida

Na semana passada, integrado no Ciclo de Filmes de Culto do Teatro Gil Vicente, vi O Elemento do Crime, primeira longa-metragem de Lars von Trier, verdadeiro génio da sétima arte. O filme inaugura a sua trilogia Europa reflexão sobre o futuro do nosso continente e civilização – apresentando-nos uma Europa decrépita, pobre e podre, abandonada, impotente. A visão e a fita levaram-me a reflectir sobre o nosso destino enquanto membros desse espaço, que ainda com o início deste ano se alargou à Bulgária e Roménia, cuja entrada na União foi tão mornamente celebrada. O Espaço Euro enriqueceu-se também com a entrada da Eslovénia: quantos o terão notado, fora os numismatas? Alguns poderão justificar a falta de entusiasmo com a distância geográfica ou com a diferença de culturas, mas é o não percebermos que aqueles povos partilham as nossas raízes – e, ao mesmo tempo, as acrescentam de valores e tradições novas – que mais nitidamente revela como há Europa, mas ainda não há uma identidade europeia.

Esta falta de consciência de um elo comum – que se chama passado – é preocupante para os que olham para o futuro. Em reganharmos a certeza de sermos um estará o sucesso da nossa sobrevivência – a linha que nos separa da visão apocalíptica de von Trier. A louvada paz que tem sido abençoada como um dos maiores dons da União é uma consequência directa da percepção de que “muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa”, para citar Carlos Tê. Entendamo-nos: a união política e económica é somente um reflexo dessoutra unidade mais profunda de um conjunto de países que, porque partiram do mesmo ponto, querem agora chegar à mesma meta. Se a Europa está estagnada enquanto projecto é por as suas populações não entenderem esta verdade: só assim se explica as águas de bacalhau da Constituição Europeia.

Veja-se o português: este continua a olhar a UE como nascente de dinheiro (ou exílio oportuno), escapando-lhe o seu desígnio maior, como bem se percebe da recepção de Bolonha. Independentemente da atribulada aplicação do documento nas universidades (essa criticável), Bolonha, em si, pode vir a tornar-se, aliada ao programa Erasmus, no «Euro» dos universitários.

(E eu que começo a pensar que só uma Bolonha no Básico poderá salvar a educação nacional!)

Bolonha é mais um instrumento na construção da consciência europeia, que, dizíamos, é importante cimentar nos espíritos, especialmente agora, com a futura entrada, eternamente retardada, da Turquia, estranha ponte entre Ocidente e Islão, no espaço europeu. O desafio já nos é posto com o problema da integração das comunidades árabes – vivamente discutido aquando do atentado em Londres. Parte do falhanço na sua integração prende-se directamente com a grosseira ausência de um sentido de identidade europeia que os anos já deviam ter sedimentado. Quem desconhece a sua própria cultura não pode levar outros a adoptá-la. E a cultura europeia é mais do que uma mera repetição dos valores ocidentais. Se a identidade americana resulta duma mistura de culturas, a nossa resulta de uma profusão de culturas a partir de um mesmo tronco. Esta mesma derivação é, espante-se!, paradoxalmente, a nossa unidade. Angela Merkel, ao assumir este mês a presidência rotativa da UE, chamou a isto tolerância.

É que a Europa não é um monólito, mas uma árvore. Porém, tolerância, repito, não significa ignorância: pelo contrário, ela incentiva a um maior conhecimento da cultura própria e alheia, pois só assim se gera respeito mútuo. A Europa é uma ideia, e isso é fraqueza e força: fraqueza, porque não subsiste per se, antes depende das mãos e dos lábios que a façam viva; força, porque, imaterial que é enquanto ideia, nada a pode destruir – e ela persistirá!

19 January 2007

A Manifestação

4 horas: é preciso amar muito Amadeo. Regozijei na leitura da capa do jornal; preenchi-me de alegria com as imagens na televisão. Amadeo não está na lista dos grandes portugueses – Amadeo teve porém consigo os portugueses. O pintor, nome maior do modernismo europeu, teve duas infelicidades: morreu cedo, nasceu português. “Um pouco mais de sol - e fora brasa, /Um pouco mais de azul - e fora além.”, escreveu o seu amigo Sá-Carneiro: tivesse Amadeo apenas nascido em França!, houvera subido, elegante e ligeiro, mais alto que tantos outros.

O que se passou na Gulbenkian foi uma manifestação. Quiçá, mais poderosa que aos protestos convencionais. Força de um fantasma do passado!, que invocado por uma evocação, convoca assim um povo. Não houve cartazes, houve quadros; não houve sindicatos, houve Amadeo – e uma revolta, marcha silenciosa, que brilhava. Uma rebeldia contra o PREC: Processo de Rápida Estupidificação em Curso. Este foi o sinal que os portugueses quiseram enviar, como estrela de Belém, de Belém a São Bento. Este fim-de-semana, os portugueses berraram, numa língua sem TLEBS, «Nós queremos ser cultos!».

(Entretanto, na telenovela TLEBS [nova terminologia linguística], o governo procedeu a uma interrupção voluntária da mesma: “deficiências” obrigam a proceder a um trabalho de revisão nos próximos anos. Registo, para a posteridade, a seguinte frase de Luís Capucha, director-geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular, em entrevista ao Público de seis de Janeiro: “Vamos sujeitar a TLEBS a um teste prático: saber se os alunos que aprenderam com a terminologia têm melhores resultados a Português. Vai ser já este ano que vamos fazer essa comparação, através dos exames do 9º e do 12º ano”. Não me rio de imediato: esperarei, calmo; como, de resto, procedi no caso da repetição dos exames – aguardando que o tempo me engorde a razão. Se, por acaso, os resultados dos exames forem superiores – saiba-se, foi só por acaso.)

Os portugueses não só querem não ser estúpidos, como não querem ser vistos como tal. E por isso manifestaram-se, na semana em que se soube que o Museu do Azulejo – o quarto mais visitado de Lisboa – é forçado no fim-de-semana a fechar ao almoço por falta de pessoal e que para essa situação caminham o Museu dos Coches e o Museu Nacional de Arte Antiga, não obstante em 2006 os museus estatais terem superado o recorde de visitantes firmado em 98, ano de Expo. Isto, para não mencionar na lista de indignações o fim, anunciado ainda no ano passado, da Festa da Música. Ou a imensa confusão que continua a rodear a colecção Berardo.

Dir-me-ão que quem esteve ali, na Gulbenkian, não foi o público da Floribella – mas foi decerto o público que não quer que o país caia nas mãos do público da Floribella. Foi uma população escondida que se revelou – que se vai revelando, discreta, quando as coisas boas aparecem, para as saborear (ah!, como me ocorre à memória o recente e excelentíssimo Hamlets encenado pelo TEUC no Gil Vicente de Coimbra!). E esta massa muda vai relembrando urgentemente que este país, que pôs na lista dos seus cem maiores Maria do Carmo Seabra – que promulgou a TLEBS, foi o mesmo que nela inscreveu o Pe. António Vieira, Vieira da Silva ou Almada Negreiros e levou ao grupo dos dez maiores Pessoa e Camões.

A semana passada, Portugal ratificou uma convenção da UNESCO com vista a proteger da liberalização do mercado os bens culturais, assim salvaguardando as manifestações artísticas locais que, doutra forma, não poderiam subsistir: haveria cinema português sem Estado? Calculo que os manifestantes da Gulbenkian, no meio do seu descontentamento, tenham sorrido com a notícia, esperançosos – e eu com eles – de um futuro melhor.

01 January 2007

O Padrinho


O Estado está, como polvo, espalhado, tal bebida entornada, por todo o lado. Por isso, é forte – nesse adjectivo que, para classificar este governo, é promíscuo – de em tantas bocas já ter sido falado. Sócrates apresenta-se, sistematicamente, na pesrpectiva de uma certa camada pública, como um símbolo de unidade e direcção, homem bravo, capaz de afrontar os interesses instalados – e daí retira o seu aplauso e graça. Porém, esta força, que é omnipresença, tem os seus custos – como aqueles dos que, imprudentemente, hoje querem tanto vender a sua liberdade pela sua segurança.

Exemplo: Teme-se o pior em 2007, pois, se tudo correr como o Governo deseja, a censura vai regressar”, comentava Francisco Penim, director de programação da SIC, no Correio da Manhã de sexta-feira passada. Ainda em Dezembro, no antologia semanal do Contra-Informação, abruptamente a emissão foi interrompida para publicidade (sem que fosse depois retomada) quando Vladimir Putin (isto é, o boneco parónimo) ameaçava de morte os atletas do Spartacus de Moscovo com uma caixa contendo material radiocativo. Falha técnica? Porém, difícil de conciliar com a hipótese do erro humano, em jeito de dúvida prudente, foi a cobertura da estação pública da estação dos incêndios. A situação de aparente e subtil relação entre o Estado e a televisão pública foi sintomaticamente caricaturada pelo Gato Fedorento num dos seus sketches, onde se mostrava o apego do canal à agenda do governo. É necessária uma séria investigação sobre o assunto e, mais ainda, uma constante postura crítica por parte do espectador (hoje tão urgentemente reduzido à estupidez pelo telelixo). Este ano, de resto, foi, efectivamente, pouco abonatório para a liberdade de expressão, especialmente se tomarmos em consideração a conjuntura global com o paradigmático caso das caricaturas do Profeta.

Lendo o jornal e correndo a net, tropecei em mais um caso de intrusão do Estado num matéria, verdadeiramente, absurda. Soube recentemente que o famigerado Ministério da Educação legislou em Outubro sobre a dimensão dos cacifos das escolas: assunto de público interesse e urgência para o aumento de qualidade do ensino português. Li esta semana a sugestão de se extinguir o Ministério da Educação – efectivamente, já foi maior o meu desacordo com a ideia.

Com dois mil e sete entrou também em vigor a lei que obriga a que os pescadores lúdicos adquiram, para o efeito, uma licença, a qual os submete a um conjunto de normas como a obrigatoriedade da distância de uma dezena de metros entre cada praticante do pacífico desporto. O governo planeia, de seguida, obrigar à aquisição de uma licença semelhante os praticantes de xadrez, malha e bisca. Será enfim tempo de estender ao Ministério das Pescas a crítica que tão recorrentemente – porque acertada – se faz ao da Educação: quem nele trabalha, decerto que não tem exercido a profissão sobre a qual legisla.

Porém, revelador desta omnipotente introdução do Estado em qualquer assunto, por muito remoto que lhe seja, é a situação, tragicómica, do novo cemitério na Póvoa do Varzim, onde, por imposição da câmara, todas as sepulturas passarão a ser tayloristicamente iguais, sem ornamentos de maior: nome do morto e jarra de flores. O lema que preside à medida, confessado pelo vereador responsável, é gaulesamente inspirado: “Iguais a nascer, iguais a morrer”.

Este é verdadeiramente o Estado Social (qual crise dele!): o Estado que acompanha o seu cidadão desde o berço (em Badajoz) até à cova (na Póvoa).