25 August 2008

Sugestão À Imprensa Impressa

Podia mentir – não vale a pena, porém (nem está correcto): não tenho assunto para a crónica. Corrijo-me: não tenho assunto interessante para a crónica. Devo, talvez, ser mais preciso: não tenho assunto relevante para a crónica. Aconteceram certamente coisas: continuaram a imprimir-se jornais e as televisões, à uma hora, pontuais, vinham intrometer-se no nosso almoço, atraídas, quiçá, pelo bom cheiro da comida. Tínhamos, para nos entretermos, os Jogos Olímpicos e a onda de assaltos (os russos, por solidariedade, decidiram-se a assaltar um país inteiro, por exemplo). Desliguei-me do mundo para férias durante coisa de quinze dias, mas quando me devolvi a ele achei-o igual: nada me motivava sequer uma altercação de café (reconheço, contudo: Michael Phelps, o peixe, entusiasmou-me).
Voltei do meu exílio, peguei nos jornais guardados (tinha de escrever uma crónica). Pareciam-me uma acumulação infantil de faits divers, de maior ou menor dimensão. Recordei as palavras de Swann, personagem homónima do primeiro volume do Em Busca do Tempo Perdido, de Proust: “O que eu censuro nos jornais é obrigarem-nos todos os dias a dar atenção a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais”. Mais: “Já que rasgamos febrilmente todas as manhãs a cinta do jornal, então devíamos mudar as coisas e pôr no jornal, sei lá, os... os Pensamentos de Pascal”. Belíssima ideia: teria assim, facilmente, sem dúvida, matéria para muitas crónicas.
Pelo contrário, os media, nomeadamente as televisões, insistem em reportagens absolutamente irrelevantes, com o único intuito de entreter o espectador – a notícia, coisa séria, antes matéria dos arautos, é agora apregoada por jograis. Não menos intrigante, para mim, é a forma como se conseguem escrever jornais diários inteiramente dedicados ao desporto (por amor à verdade não digo futebol). Como se mantêm os canais noticiosos vinte e quatro horas no ar: acontece na terra tanta coisa? Não deixa de ser curiosa esta nossa bisbilhotice moderna pela novidade, que amanhã é já antiga (pergunta brincalhona: são possíveis novidades de ontem?). As pessoas querem opinar sobre tudo (algumas até escrevem crónicas).
O paradoxo maior é que, no fim, com tanta informação, andamos, regra geral, mal informados (o paradigma desta verdade será talvez o caso Maddie). O incessante fluxo de notícias impede que estas sejam aprofundadas devidamente, quer pelos espectadores, quer pelos próprios media. Proponho fazer-se a seguinte experiência: entre os jornais de dois dias seguidos, deixar passar uma semana. Levar-se uma semana para ler bem e calmo o número de um jornal, conhecer-lhe as notícias e protagonistas a fundo. Rejeitar a descartabilidade do objecto (há uma certa nova, chamada Boa, que se mantém actual, dizem, já há dois mil anos).
Um esquema como o proposto resultaria ainda noutras vantagens. O jornal do dia seguinte, publicado, porém, apenas uma semana depois, guardaria já só as informações fundamentais, resistentes ao teste do tempo como um bom relógio à água; os editores, com o conhecimento do que se tinha entretanto passado, seriam mais criteriosos na escolha dos artigos, privilegiando os mais completos e essenciais. Nada de coisas irrelevantes: teríamos um jornal concentrado como sumo de laranja. O Jornal da Mealhada, por ora, ainda não aderiu a esta ideia revolucionária: já pensou o leitor quanto não teria ganho se não tivesse desperdiçado o seu tempo a ler esta pequena crónica inútil de um escritor sem assunto?

20 August 2008

Estudo Sociológico da Alma Portuguesa (Disfarçado)

Sempre apreciei os artistas de rua, na existência secreta que levam à margem de toda a sociedade, livres duas vezes, porque vão aonde querem e têm só o essencial. O meu paraíso privado é a escadaria imensa do Sacré-Coeur, em Montmatre, Paris, onde (e aqueles que viram Amélie lembrar-se-ão disso) dezenas destes bons saltimbancos encantam os transeuntes com o seu talento. Em tempo de Verão, não é raro encontrá-los nas artérias nocturnas das cidades junto à praia. Na outra noite, junto ao Casino da Figueira, ali estava: um malabarista jogando com o fogo, logo depois da estátua viva da mulher-borboleta. Impressionante. Alguém por trás de mim comentou: “Com tanta habilidade não deve ser português”. Esta frase é todo um programa.
Não acreditamos em nós próprios, maldizemo-nos (dizemos mal de nós e fazemos disso um desporto): temos a sinceridade de nos sabermos, no geral, homens sem qualidades. Que haja génios em Portugal, como o Gonçalo M. Tavares, é puro acidente, e nada tem a ver com o facto de serem portugueses; como o Euromilhões quando calha em Portugal calha em Portugal porque calhou (mas podia ter sido na China até, conquanto a China fizesse parte da Europa). O primeiro-ministro leva um lenço à cabeça, para apagar o suor e o medo, e pede-nos que não sejamos tão pessimistas porque tudo está bem e temos o Magalhães. Como não havemos de dizer mal de nós, se fomos nós que o elegemos? Com tão pouca habilidade para governar, é sem dúvida português: “Os lusitanos não se governam nem se deixam governar”, Júlio César dixit.
Esta falta de habilidade geral anda a preocupar gravemente a Ministra da Educação, que propõe agora instituir (a ver se estimula a habilidade, que é tão tímida) um prémio monetário de quinhentos euros que será entregue ao melhor aluno de cada escola, no final do Secundário. Escandalizou-se meio mundo com a notícia, incapaz de compreender que nenhum aluno se vai esforçar por tirar melhores notas na pauta para ter notas na carteira. Algumas notas soltas sobre o assunto. Temem os sociólogos, os psicólogos e outros –ólogos que esta medida fomente uma competitividade pouco saudável entre os alunos, mas isso revela um desconhecimento profundo da alma portuguesa. O português, efectivamente, tudo faz para ganhar mais uns tostões, desde que isso não implique trabalho. Exemplo: são vários os prémios de mérito nas universidades (com recompensas monetárias bem superiores a 500€); isso, porém, não trava a altíssima taxa de reprovações. Se a Ministra pretende reduzir o insucesso escolar, e é isso que pretende (engraçado que este mesmo verbo, em inglês, signifique fingir), escolheu o método errado. Quem tira boas notas (falamos aqui das notas de topo, claro) fá-lo, na maioria dos casos, como resultado de uma cultura de excelência inculcada cedo na criança pelos pais (não pelo país – um acento faz toda a diferença entre a verdade e a mentira) e, paralelamente, por um imperativo pessoal, outrora chamado brio. Excluem-se destas considerações os alunos de medicina.
Esses, empurrados por um sistema errado, são forçados a competiram estupidamente entre si, eliminando-se mutuamente por questões de centésimas. É por isso uma autêntica revolução o que o reitor da Universidade do Algarve veio anunciar no início do mês em relação ao novíssimo curso de medicina da sua universidade, que abrirá para o ano. Serão tidos em conta na admissão dos candidatos, como critérios verdadeiramente relevantes, a “atitude humana” ou a “experiência de vida com pessoas vulneráveis”. Enfim se entende que um médico tem de ser tão profissional quanto pessoa: só gostamos do Dr. House na televisão. Uma razão para não nos maldizermos: estamos a ganhar juízo, e em grandes quantidades (esperamos agora que isso não cause nenhuma indigestão). Nota importante, todavia: quem está a preparar o curso é um estrangeirado (outro que teve de partir), catedrático no King’s College, em Londres.
P.S.: O malabarista “com tanta habilidade” era alemão.