18 March 2008

Marchas Populares

No primeiro dia do mês, a cidade acolheu o campeonato nacional de marcha, levando ao corte dalgumas das principais artérias da cidade e à abertura de outras improvisadas. Tenho de agradecer a Susana Feitor e João Vieira o terem forçado à inauguração de uma ligação entre a minha escondida rua e a da estação de comboio, pequeno atalho útil que, contudo, um só dia me serviu: a passagem foi já entretanto encerrada. A experiência, porém, por curta que tenha sido, bastou para ouvir – até de desconhecidos, que arriscaram conversa comigo – elogios ao prático e rectilíneo caminho que se abriu, paralelo à linha de comboio.

Isto das marchas parece, de facto, estar hoje na moda. Sábado passado, os professores promoveram a intitulada «Marcha da Indignação», reunindo cem mil manifestantes (avassalador número). Por repetidas vezes crocitei neste espaço o meu desagrado pela actual Ministra e o seu gabinete: não pude, por isso, deixar de rejubilar perante tal manifestação de força dos docentes, a quem, não me podendo unir em corpo, me juntei em espírito e, agora que escrevo, em letras. O PS, amedrontado, em vão quis responder com uma marcha de rua também, mas o beija-mão já foi transferido entretanto para um discreto pavilhão no Porto, entre quatro paredes.

Podia (e isso tenta-me como uma maçã) falar – seria óbvio, é o tema quente – sobre a situação insustentável que se atingiu na educação. Outro, porém, é o fenómeno que me atrai: esta nova vaga de marchas populares (e ainda não estamos no tempo dos santos). Há quem a tema e quem a saúde. Já ouvi rumores de PREC, já li comparações com esse tempo que eu não vivi: os ânimos andam exaltados. A questão, porém, permanece (Pacheco Pereira dedicou-lhe a sua última crónica no Público): porque estão as pessoas a sair à rua? Augusto Santos Silva acusa forças “de natureza anti-democrática” e faz lembrar a irritação de Sócrates quando este, confrontado com as manifestações populares em Montemor-o-Velho em Outubro passado, acusou o PCP e os sindicalistas de as orquestrarem. O governo falha em perceber que nenhuma força de carácter político ou afim poderia, por exemplo, mobilizar o assombroso número de professores que se manifestaram em Lisboa. Na realidade, muitos confessaram às televisões e jornais ser a primeira vez que participavam em acções de rua, e outros tantos sublinharam o seu carácter apolítico: é porque não acreditam nos partidos que as pessoas estão, enfim, a sair à rua.

Falo em nome de uma geração desencantada, a minha. Robert Redford, conhecido actor e cineasta, numa entrevista a um canal britânico a propósito do seu mais recente filme Peões em Jogo, explicava que os jovens se tornaram tão indiferentes à política por nunca terem conhecido uma liderança moral. Porque deixámos de acreditar que os partidos possam resolver os problemas que afectam a sociedade, carregámo-nos nós com essa responsabilidade, independentes. A internet oferece a plataforma ideal para essa contracorrente: veja-se a reportagem que o Público dedicou, aquando da marcha dos professores, aos blogues da autoria destes e ao seu papel na discussão pública dos decisões ministeriais, como o A Educação do Meu Umbigo, um dos mais frequentados (por mim também) de toda a blogosfera portuguesa.

Há, porém, uma fresta de esperança. Veja-se o fenómeno Obama, nos EUA, em que os jovens estão a desempenhar um papel importantíssimo. Estamos famintos de mudança, de ventos novos, que arejem o ar bafiento do establishment político. Não podemos por isso deixar de nos alegrar com o anúncio de um novo partido, por enquanto um movimento apenas. Não cremos nos velhos partidos, mas aos novos estamos talvez dispostos a dar uma chance (veja-se o caso sintomático do BE, que, quando surgiu, procurando vender-se como corpo estranho ao sistema, ganhou uma boa base de apoio juvenil, que fomentou o seu crescimento). Dêem-nos razões para acreditarmos no futuro, esse tempo desempregado, como nós, os jovens.

O Rasganço

Steven Spielberg renunciou, em meados do mês, ao seu cargo de conselheiro artístico dos Jogos Olímpicos de Pequim, acusando a China de pouco fazer para travar o genocídio em curso no Darfur. A propósito do gesto do realizador, o Diário de Notícias conversou com Vicente de Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal, que exprimiu a sua tristeza com a decisão do cineasta americano, alegando que “não compete ao desporto tomar posições políticas”. O entrevistado afirma mesmo que boicotar os Jogos de Pequim “seria um completo disparate”. Parei o jornal (estava também já na última página), e espantei-me (com boca aberta e tudo, em grande teatro).

Dalguma forma, a entrevista é um espelho polido do tempo presente. Nela, com clareza, se mostra a cesura operada na nossa sociedade entre as várias esferas da acção humana: há muito abdicámos do homem completo. “Deixemos a política para os políticos”, proclama Vicente de Moura. Se a política é, de facto, coisa de políticos e políticos apenas, acabem-se as eleições universais. O presidente do Comité Olímpico português defende-se, invocando o artigo 51º da Carta Olímpica, que proíbe o envolvimento de atletas e dirigentes em movimentos de natureza política. Coisa cobarde esta, de ter a lei como toca para hibernar a consciência. Antígona, a doce filha de Édipo, teria muito a ensinar aos homens de hoje (as mulheres, de resto, são por excelência as professoras dos homens).

Estranho mundo este de heterónimos. Questionado sobre o Darfur, Vicente de Moura reconhece que “a minha posição enquanto cidadão é óbvia”, mas logo a seguir, “como presidente do Comité Olímpico de Portugal”, garante não poder responder à pergunta. Quantos homens podem habitar um homem? Ganhámos a peste de Aristóteles: a de tudo arrumar em categorias. Os direitos humanos, aparentemente, são do âmbito da vida cívica; não da profissional: já o devíamos ter aprendido pela análise do capitalismo – o importante é singrar. Falando do boicote aos Jogos de Moscovo, Vicente de Moura reconhece: “Quem não foi perdeu a oportunidade da sua vida e muitos ficaram esquecidos.” Há um genocídio em curso no Darfur, tacitamente apoiado pela China, mas, apesar disso (saibamos relativizar as coisas), é mais importante que os nossos atletas não esbanjem esta oportunidade de subir ao pódio.

Eis o ser humano rasgado, que hipotecou a sua unidade. Noutro tempo, dizia Terêncio: Sou humano, e nada do que é humano me é estranho. Quantos podem hoje afirmar o mesmo, nesta época em que, todos especialistas numa coisa qualquer desinteressante, perdemos a capacidade de comunicação entre a filosofia, a arte, a religião, a ciência, o desporto e a política? A cisão entre estas grandes áreas da expressão humana é um dos maiores entraves ao progresso.

Veja-se: recomecei as aulas na semana passada. Numa cadeira reflectíamos sobre as várias tentativas de definição do mito. O professor, cansado, concluiu pela impossibilidade de assentarmos numa, pela dificuldade em teorizar o fenómeno. Na aula logo a seguir, porém, outro professor, de área diferente (a bela Filosofia), de imediato aponta no quadro os traços essenciais, delineados com precisão, para que uma qualquer narrativa mereça a distinção de mito. Como é possível tal surdez entre saberes?

Por muito que Vicente de Moura queira mentir a si próprio, desporto e política não constituem duas esferas de acção humana irreconciliáveis. Spielberg agiu bem: Pequim 2008 é para a China o que Berlim 1936 foi para Hitler – uma gigantesca operação de propaganda. Leni Riefenstahl produziu para o ditador alemão um documentário dos Jogos em tudo cordato com a ideologia nazi (Olympia, filme de beleza rara, não obstante): era isso que se pedia a Spielberg. A sua atitude mostra que ainda há, afinal, pessoas íntegras. Seguissem outras o seu exemplo.