14 February 2008

Disparem Sobre O Pianista

Uma amiga minha, estudante de boas notas, abandonou recentemente o curso de Direito para, corajosa, prosseguir o seu sonho de longa data: ser cantora lírica. Marcámos um lanche, para ela me contar a novidade e eu lhe cantar os parabéns. Entre tostas mistas e um sumo, fomos conversando sobre a música e o mundo. Vice-presidente da Associação de Estudantes do Conservatório de Coimbra, L. (guardemos, por ora, o anonimato – em tempo oportuno, daqui por uns anos, talvez descubram, num cartaz do São Carlos, o nome dela) chamou-me a atenção para o ataque que o Ministério da Educação está a (pro)mover contra o ensino da música em Portugal. Eu lera já umas notícias sobre o assunto, e logo na altura achara tudo aquilo muito disparatado (mas essa já é a minha opinião natural sobre várias obras da actual Ministra), mas, após o lanche, resolvi, sherlock holmes, investigar o caso – e o que descobri horrorizou-me.

Depois do ataque ao Sistema Nacional de Saúde, eis o ataque à rede pública de ensino de música, essa arte maior, das artes a maior. De novo, tudo se pratica com boas intenções (o povo e os artistas é que, lá está, são burros, coitados!): desta vez, o alibi é a democratização do ensino da música. Pretende a Ministra que os conservatórios não possam dar aulas (os chamados cursos de iniciação) aos alunos do primeiro ciclo que, doravante, serão iniciados na arte musical na própria escola, no âmbito das actividades de enriquecimento curricular. Uma coisa, porém, não substitui a outra; posso afirmá-lo por experiência própria, eu que tive quer educação musical na primária, quer aulas de piano por fora, numa escola privada. Basta considerarmos que, numa turma, apenas se pode fazer uma sensibilização geral para a música, porque a aprendizagem séria de um instrumento requer um acompanhamento individual: não se pode ensinar piano a uma turma de trinta alunos (vulgarmente, escolhe-se a flauta de bisel, portátil, simples e barata). Para ultrapassar este limitação é que o conservatório oferece uma formação musical especializada, de seis horas por semana, às crianças.

A loucura da Ministra, contudo, não conhece limites, tendo passaporte para todas as fronteiras que pudéssemos conceber. Pretende pois o Ministério extinguir ainda o regime de frequência supletivo do conservatório, o mais comum, que permite ao aluno frequentar paralelamente o ensino normal e o musical, sem que seja obrigado a decidir-se especificamente por um deles. O fim deste modelo traduzir-se-á na perda de 75% dos actuais estudantes do Conservatório de Lisboa. Doravante, apenas o regime integrado estará disponível, o que obriga a que a opção por uma carreira musical de carácter profissional seja feita com somente dez anos. Esta situação – que uma criança, tão nova, seja forçada a decidir o seu futuro – é tão ridícula que, sou-vos franco e aberto, faltam-me palavras para a comentar: não sei que diga – apenas me resta o espanto ante a situação em que naufragámos. Com esta reforma, quem queira aprender um instrumento, sem desejos de fazer da música profissão, não tem mais os conservatórios.

No seminal 1984 de Orwell, todos os ministérios são nomeados pelo seu antónimo: assim, por exemplo, o Ministério da Paz é o responsável por perpetuar a guerra em Oceânia. Da mesma forma, em Portugal, o Ministério da Educação está na verdade encarregue da deseducação geral. Lamento que o novo Ministro da Cultura ainda não se tenha debruçado sobre este problema, contendo a insensatez da sua colega de governo. A música, como toda a arte, exercício humano de transcendência, é uma característica essencial da nossa natureza. Nela se exprime muito da grandeza ou ridículo de uma nação. Mesmo os cépticos e economistas têm de se curvar perante os números: a cultura representa 2,6% do PIB da UE, bem mais que o sector têxtil, a restauração ou o tabaco. Vale a pena investir nela. Estes aspectos financeiros, para mim, porém, são o menos relevante: o importante é a formação de homens, íntegros e integrais.

Contra isso combate o Ministério: contra ele combatemos nós.

imagem: fotograma de Tirez Sur Le Pianiste (1960), de Truffaut.

E Pur Si Muove!

No meu último ano do secundário, a Filosofia, a propósito dos Princípios da Filosofia de Descartes, que então estudávamos para o exame de final de ano, vi Galileo, adaptação cinematográfica da peça homónima de Brecht. O filme, preservado numa velha e corrompida cassete do professor, que o gravara quando fora exibido, gordos anos antes, no quarto canal, figura na lista das mais insossas películas que a minha cinefilia aturou (confesso-vos: aquele coro de garotos que, volta e meia, irrompe filme adentro, ainda hoje me atormenta os sonhos). Quando era miúdo, ria-me com o nome trava-línguas do “velho pisano”, como lhe chamou António Gedeão. O tempo cresceu, e eu com ele, e fui aprendendo a coragem de Galileu e amando o homem, tanto mais que, em pequeno, desejava ser, como ele, astrónomo, na impossibilidade de ser astronauta. O bom cientista, cego pelo Sol, morreu no século XVII.

E pur si muove! E, porém, move-se! Quando se imaginava o processo que a Inquisição lhe moveu já definitivamente enterrado – tão enterrado quanto o próprio Galileu –, eis que um grupo de professores da mais conceituada universidade italiana, La Sapienza, em Roma, resolveu ressuscitar a polémica, enviando uma carta ao reitor da instituição onde se declaravam contra o convite que este havia dirigido a Bento XVI para discursar na inauguração do ano lectivo. Os signatários justificavam a sua posição relembrando a laicidade da universidade, acusando o Papa de se ter pronunciado a favor do julgamento de Galileu num discurso em 1990.

O caso Sapienza permite duas linhas de reflexão: uma, mais geral, sobre a liberdade de expressão; outra, mais particular, sobre o regurgitado confronto entre ciência e fé. A liberdade de opinião está hoje – já o crocitámos repetidas vezes neste espaço – bastante ameaçada. Quem tenha dispensado alguns minutos a ler o discurso de 1990 de Bento XVI terá verificado que o Papa não defende o julgamento de Galileu, antes cita, em contexto próprio, um filósofo que o faz. Porém, ainda que o Bispo de Roma fosse, de facto, favorável à condenação de Galileu (não é), deveria ser livre de exprimir essa sua opinião. A liberdade de expressão comporta também a liberdade de ser idiota. Urge combater o império do politicamente correcto: relembre-se, no ano passado, o caso de James Watson, enxovalhado pela comunidade científica por ter avançado a hipótese de que raça e inteligência podem estar relacionadas. A ideia parece-nos absurda, mas isso não pode justificar a activação imediata de um sistema de censura pública: algumas instituições chegaram, imagine-se!, a retirar a Watson galardões com que o haviam premiado.

Por outro lado, no caso Sapienza, houve uma nítida tentativa de recuperar a antinomia ciência/fé. Nos EUA, este conflito está na ordem do dia, por um lado, devido ao 11 de Setembro, cujas motivações religiosas obrigaram muitos a repensar a natureza das religiões, por outro, por causa da cada vez maior expressão do fundamentalismo cristão americano, trazido para a ribalta com a questão do ensino do criacionismo nas escolas e com a reeleição de Bush. As religiões deparam-se hoje em dia com um grave cenário. Ameaça-as o indiferentismo, fenómeno muito próprio desta chamada pós-modernidade. Esta atitude leva parte dos crentes, como resposta, a procurar exprimir mais radicalmente a sua opção de vida, fermentando os fundamentalismos. Estes, por sua vez, originam nalguns ateus e agnósticos um forte sentimento de indignação, que os convence a extremar as suas posições, assumindo uma postura de crítica aberta ao fenómeno religioso. Indiferentismo, fundamentalismo e ateísmo radical (o «laicismo» dos professores da Sapienza): neste triângulo das Bermudas, a religião vai desaparecendo.

Desaparece – e pur si muove! É que, no fim de contas, a ciência não substitui a religião (Comte tentou fazer isso, e criou essa doutrina abjecta que foi o positivismo: obviamente, nunca tinha lido Fausto, para perceber que a ciência não pode satisfazer o homem). A história, porém, trata sempre de repor a justiça das coisas, com a sua ironia amarga: a Sapienza, riamo-nos!, foi fundada por um papa, Bonifácio VIII. Lá se vai o «laicismo»!