27 January 2008

Tudo O Que Sempre Quis Saber Sobre O Fecho Das Urgências

O ano novo inaugura-se em França – é essa a tradição gaulesa – com o incêndio de centenas de carros nos subúrbios (a crise é geral e não há dinheiro para fogo-de-artifício). Em Portugal, o povo, mais original, organiza manifestações para a festa (a do ano novo, e a “da democracia”, como uma vez a apelidou Sócrates). Desde o começo deste ainda magro ano, temos assistido, de facto, aqui – bem perto de nós –, a repetidos protestos contra o encerramento de mais uma urgência, neste caso concreto, a do concelho vizinho de Anadia.

O povo, coitado!, é muito estúpido: a maioria da população activa, de resto, não tem o secundário completo (por isso, aliás, é que o programa Novas Oportunidades é tão importante!). Se o povo não fosse tão estúpido, compreenderia rapidamente que tudo isto é para o seu bem: o Estado, não o esqueçamos, é uma pessoa de bem. “É só porque toda a gente é tão estúpida/Que há necessidade de alguns tão inteligentes” (escreveu-o Brecht). O Ministro da Saúde, Correia de Campos – pessoa de bem e inteligente –, até foi à televisão (esse meio que é o único que o pobre povo, bruto, compreende), explicar o programa do governo, na estação do governo, como tudo está a ser feito para nosso bem: diga-o a senhora idosa que faleceu no Hospital de Aveiro. Se está calada, é porque consente.

O povo, casmurro, porém, teima em não ceder (e já fizeram mais uma manifestação!). Por isso, o Corvo, em aberta solidariedade com o Ministro, propõe-se nas próximas linhas elucidar definitivamente a questão. Tudo começou a ser preparado há coisa de dois anos: não têm razão, pois, aqueles que criticam o Ministério por ter procedido ao encerramento dos centros de saúde sem ter criado as condições necessárias previamente. Com vista ao desmantelamento do SNS, o governo convocou das trevas um corpo de agentes especiais, treinados (eles mesmos o confirmam) por membros das SWAT – a polícia de elite dos EUA – e dos Serviços Secretos Portugueses: os inspectores da ASAE.

As urgências – o Ministro, clarividente, percebeu-o – só poderiam ser encerradas se mais ninguém ficasse doente: assim se tornariam, de facto, desnecessárias. Em profundo desacordo com Cristo (“Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro”: Mc 7, 14), concebeu-se então a ASAE, para que esta, controlando rigorosamente tudo quanto era ingerido pelos dez milhões de portugueses, pudesse, assim, extirpar todos os possíveis focos de doenças, a saber: as bolas de Berlim, os rissóis caseiros e os jaquinzinhos (“E o peixe podre gera focos de infecção!”, já o reconhecia Cesário, o bom poeta, no século XIX!).

A ASAE fecha assim os restaurantes para que o Ministro possa fechar as urgências. Agora, alegrai-vos!, temos restaurantes mais asseados – e asaeados. Como havemos, de facto, de ficar doravante doentes? A partir de agora, qualquer doença só pode ser entendida como um gesto de mesquinha má vontade para com as louváveis intenções do Ministro. O governo, aliás, para que não tivéssemos qualquer desculpa de todo para adoecer, tratou também este novo ano de abolir o nocivo fumo do tabaco (exceptuam-se os casinos: assim o julgou bem, e correspondentemente se interpretou a lei, o inspector-geral da ASAE – mas também isto, acreditai!, é para vosso bem, apenas eu não sou ainda capaz de vo-lo explicar porque eu mesmo não o entendo). A política do governo socrático é, concordai, coerente: ainda recentemente reduziu também o IVA aos ginásios, para que pudésseis trabalhar o vosso físico e cuidar da vossa saúde, na impossibilidade de praticardes jogging no Kremlin.

E as maternidades – perguntais – porquê encerrá-las? Escutai, pois, o Corvo, guarda fiel do Ministro. Percebeu este que, se estamos já perante o segundo ano consecutivo em que a taxa de natalidade regista uma quebra significativa, pouco razão há para manter tantas maternidades abertas. Os governos, neste campo, têm sido bem sucedidos: de tal maneira as condições de vida pioraram, que poucos ousam já dar filhos a um país que os não merece. Outros emigram para ter os filhos (vão a Badajoz). Outros emigram, simplesmente: “Galiza ficas sem homens/Que possam cortar teu pão”.

Nobel Inventou A Dinamite

Aqueles de boa memória lembrar-se-iam, quiçá, ainda do nome de Bali, na Indonésia, dos atentados de há seis anos atrás, encravados entre os dois onzes, o americano e o espanhol. A cidade esgueirou-se de novo para as bocas do mundo graças à cimeira climática que aí decorreu durante a primeira metade de Dezembro. Porque, pela primeira vez, todos os países – mesmo aqueles em vias de desenvolvimento ou até manifestamente pobres – se uniram para redigir um acordo comum, esta conferência revestia-se de especial importância.
Eram grandes as expectativas – ao nível da importância da coisa. Os jornais, para medo nosso, iam anunciando as dificuldades nas negociações, e, pouco a pouco, a esperança redundou na desilusão. Uma ligeira nota de rodapé, dizem, resgatou o acordo, permitindo o chamado Roteiro de Bali. A pressão dos EUA, secundados por alguns países de considerável poder, nomeadamente o Japão e o Canadá, impediu o estabelecimento de metas concretas: tudo isso foi empurrado, como um camelo pelo buraco de uma agulha, para a tal nota de rodapé em que se alude às páginas do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) onde se avançam – aí sim – os números que alguns quiseram esconder.
Não são algarismos agradáveis: pede-se aos países desenvolvidos que reduzam até 2020 os seus gases entre 25 a 40 porcento e a todas as nações que, em 2050, as emissões de CO2 sejam metade das actuais. Porém, a não enunciação explícita destes números no documento final limita-o bastante, tornando-o essencialmente num manifesto de boas intenções, e não permite, de modo nenhum, proclamações de vitória. O ambiente é um assunto por demais sério, cuja gravidade ainda não foi totalmente apreendida por todos. Tem-se trabalhado e não negarei os avanços feitos (veja-se, por exemplo, entre nós, o sincero triunfo das campanhas de reciclagem), mas, se ainda há alguma esperança, mesmo se mínima, de ganhar esta luta, ela exige ainda mais de nós, insatisfeita com os progressos registados.
Alguns estar-me-ão já a rotular de pessimista. George Steiner, no seu ensaio A Ideia de Europa, afirmava mesmo que um dos traços definidores do nosso continente é precisamente esta consciência aflitiva de um fim iminente. Talvez, portanto, o meu pessimismo não seja mais do que uma consequência do meu ser europeu. Não deixa de ser curioso que seja precisamente a União Europeia quem mais pugna pelas causas ambientais. Pelo contrário, os EUA, nos últimos anos, têm-se revelado, neste campo, uma força de bloqueio. Isto, porém, sob a batuta de Bush: também por essa razão, entre outras, as eleições americanas em Novembro são, possivelmente, o acontecimento político mais importante deste novo ano.
Nem todos, porém, se encontram necessariamente solidários com esta luta pelo ambiente. Há quem, receoso da mudança, procure proclamar, mesmo se a medo, que o combate contra o aquecimento global pode ameaçar a paz, como o director do Público, defendendo que o crescimento económico, que as metas do IPCC põem em causa, é o que sustenta a actual paz. Esta é uma argumentação sem dúvida original – mas débil, que menospreza o que está verdadeiramente em questão: a nossa sobrevivência enquanto espécie.
O Prémio Nobel da Paz deste ano (perdão, do ano passado) foi para o IPCC (tomo a liberdade de não mencionar Al Gore). A tarefa do IPCC tem sido repetidamente relembrar-nos a bomba-relógio cuja desactivação teimamos em adiar, armados em James Bond, confiantes de que, como sempre nos filmes do espião, no último segundo, silenciaremos o mortal tique-taque. No fundo, o que este Nobel nos lembra é a dinamite sobre a qual caminhamos: que tenhamos isso sempre presente ao longo deste novo ano.