28 February 2007

O Estudo da Nação

Um povo mal-acordado tem duas maneiras de se olhar ao espelho de manhã: pelas mãos dos artistas e filósofos, nas metáforas múltiplas da criatividade e do pensamento; ou pelos lábios dos sociólogos e matemáticos, nas estatísticas estatalmente encomendadas. O pequeno mês de Fevereiro enlatou em si, como num metropolitano japonês, ampla quantidade de estudos, revelados na última quinzena: os portugueses, como uma mulher, mediram-se no reflexo de uma montra – e descobriram a sua tristeza.

O mote foi lançado pelo último relatório da UNICEF, que registava que uma em cada cinco crianças em Portugal estava descontente com a sua vida. Só a Noruega, por meio ponto percentual – mania dos países nórdicos de liderarem todas as tabelas e todas as estatísticas!, superava a nossa taciturnidade (derivará esta tristeza comum do bacalhau?). Porém, em compensação, regista-se em Portugal o mais baixo nível, dentro do espaço da OCDE, de «bem-estar educativo», parâmetro que afere, de um modo geral, a qualidade do ensino: possuímos uma das mais elevadas taxas de abandono escolar e os resultados dos alunos portugueses nos vários testes de literacia – a nível de conhecimento científico, somos mesmos os mais fracos – justificam plenamente a nossa humilhante posição. É significativo que Portugal seja o país onde mais jovens (13%) confessam não existirem sequer dez livros em sua casa. Não obstante tudo, ou talvez por isso mesmo, os alunos portugueses são dos que dizem gostar mais da escola (31%) – possivelmente, porque nada (ou muito pouco) se faz lá. É um exercício de humor negro ler os cartas de leitor, assinadas por professores, que chegam aos jornais, relatando peripécias de aulas de substituição ou problemas com o prolongamento dos horários no primeiro ciclo. O problema só secundariamente reside em alunos ou professores, antes se centra nos poderes que lhes são superiores: respectivamente, os pais e o Ministério da Educação, prodígios de incompetência.

Tal como as crianças, também os pais deste país rasgam as vestes e batem no peito, em espectáculo tragicómico de tristeza. Um relatório de meados do mês, por exemplo, dava conta da estagnação das vendas de antidepressivos. Porém, os médicos entrevistados manifestavam o espanto, pois os casos de depressão, a seu ver, haviam aumentado – andamos todos deprimidos.

O jornalista, coitado!, avançava então com a tese da redução do poder de compra para justificar o paradoxo. E, efectivamente, Portugal, revelou dia vinte a UE, está entre os mais pobres dos seus vinte e sete estados-membros. Mais grave é o facto de o emprego não constituir necessariamente uma salvaguarda contra a pobreza: assim, 14% dos portugueses empregados vivem, mau grado o seu salário (esses salários baixos, lembram-se?, que devem atrair os chineses), abaixo do limiar da pobreza – a taxa é o dobro da média europeia; Portugal regista o pior resultado. O elevado risco de pobreza, afirma a Comissão Europeia, justifica-se pelo aumento do desemprego e o baixo nível de escolaridade dos jovens: assim fica comprovado como os dois lados da balança se interrelacionam e, por isso, o Ministério da Educação é quase tão vital para a recuperação económica do país como o da Economia.

Esta precária conjuntura contribui decerto para que Portugal apareça como o país onde se registe menor bem-estar psicológico, num estudo anglo-americano que investigou os níveis de felicidade de quinze nações europeias para os relacionar, surpreendentemente, com os problemas de hipertensão. Consequentemente, Portugal é não só, dos quinze, o mais infeliz: é também o mais hipertenso. E, desengano!, nem no campo se achará a paz que na cidade se perdeu: outra investigação da UE publicada este mês revelou que, em média, a qualidade de vida no campo é inferior à da cidade, sendo tanto pior quanto mais pobre o país. Coerentemente, Portugal aparece nos últimos da lista: eis o estado e o estudo da nação. o corvo

14 February 2007

Brincar à Paz + Memória

No primeiro dia do mês mais longo desta cidade, o mundo soube a data do último volume da saga mágica de Rowling: o sétimo livro de Harry Potter estará nas livrarias a 21 de Julho. Outro anúncio e lançamento, contudo, passaram mais despercebidos. Uma empresa americana, Impact Games, disponibilizou o seu primeiro título: Peacemaker, à letra, aquele que faz a paz. Nunca fui assíduo consumidor de jogos de computador, mas apressei-me a adquirir este. Descarreguei o programa do site oficial – www.peacemakergame.com, custando-me a compra menos de vinte euros: nitidamente um preço simbólico, se atentarmos no atentado que são os preços dos grandes jogos do mercado. Instalado o ficheiro, corri a corrê-lo.

O meu invulgar interesse remontava já ao Verão, altura em que pela primeira vez contactara, numa notícia de jornal, com o projecto. Como o próprio nome indica, neste novo jogo de estratégia, contrariamente ao que sucede nos clássicos do género, o objectivo não é tanto a eliminação física do adversário mas sim a coexistência pacífica. Se o didactismo e inovação inerentes a este conceito seriam suficientes para que o projecto fosse louvado, este reclama maiores aplausos por servir-se de um conflito real para o seu propósito. Assim, o jogo reproduz, com fidelidade e ilustrando com vídeos e imagens, o problema israelo-palestiniano.

O jogador pode optar por desempenhar o cargo de presidente da Palestina ou primeiro-ministro de Israel, em três níveis de dificuldade diferentes: calmo, tenso ou violento. Dispondo de um vasto leque de acções ao seu dispor, o utilizador tem essencialmente de tomar decisões, com cujo resultado é confrontado no fim do round, e que não só condicionam as suas escolhas como influenciam todos os outros poderes em jogo, como o Hamas, os EUA ou a ONU. O jogador estará tanto mais perto da vitória quanto melhor conseguir reunir o apoio dos vários intervenientes na cena política, preparando-os e preparando-se para o difícil caminho da paz.

Os jogos didácticos tendem a não agradar aos jogadores normais, por raras vezes conseguirem ter a mesma qualidade de outros títulos do mercado, saídos dos grandes estúdios. Tendo já mostrado Peacemaker a alguns amigos meus, não é essa a impressão que tenho: o jogo, que creio ser peça de um mundo melhor para um mundo melhor, representa um verdadeiro desafio – talvez porque o problema em que se inspira é ele mesmo um dos maiores desafios da sociedade actual. Ainda no final da semana passada, reuniram-se em Meca o presidente e primeiro-ministro da Palestina, sob os auspícios do rei saudita, para procurarem pôr termo, pela formação de um governo de unidade nacional, à guerra civil. Islão significa paz, etimologicamente. Que as raízes da palavra mergulhem na terra.

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Faz hoje uma semana que o P.e. Abílio faleceu. Não posso deixar, dolorosamente, de o evocar aqui. O P.e. Abílio, sob o seu frontispício de rigor e precisa exactidão de latinista nas palavras e nas coisas, era também um espírito cómico, de subentendidos humorísticos de uma elevação rara, sempre perspicazes e bem-dispostos. Professor nato, nunca se escusou a pôr ao serviço dos outros – e que é a vida de um padre senão o serviço? – os seus conhecimentos, quer fosse na tarefa de revisor deste jornal (quantas vezes a sua paciência e lápis me limaram – como num trabalho de ourives – as crónicas!), quer fosse no exercício do professorado: na escola, no seminário ou entre os imigrantes, quando começou para eles aulas de português. Como pároco, o seu trabalho é indesmentível e duradoiro – fui relembrado disso quando, no sair triste e lento da igreja, revi as duas placas que ladeiam aquele hall. O P.e. Abílio, estou certo, permanecerá muito mais tempo connosco que aquele que nós permanecemos com ele.


Publicada a 14.2.2007