09 October 2005

O Arrastão ou O Cansaço de Pensar (III Parte do Ciclo Nipónico)

Este mês de Setembro trouxe aos leitores da revista de cinema Première a oportunidade de adquirirem, conjuntamente com a publicação, o filme Battle Royale, uma violenta sátira à sociedade nipónica, criticando a extrema tensão a que estão sujeitos os alunos nas escolas, onde domina um frenético regime de competição, com elevadas pressões sobre os discentes para que sobressaiam acima dos seus companheiros. Levando a um extremo cruento tal concorrência, a película retrata uma turma de nono ano em que os alunos são presos numa ilha onde têm de se matar até que só sobreviva um, num futuro distópico.

Se a ideia é abjecta, conduz-nos também a uma reflexão sobre o seu oposto: se esta obsessão desenfreada pelo estudo e pelo sucesso tem os seus efeitos nefastos, o mesmo se aplica ao relaxamento generalizado que degenera na estupidificação da juventude, entre nós. A exigência deveria substituir a indulgência, sob a asa da qual tantos maus resultados são permitidos. O ritmo de aprendizagem é definido pelos que obtêm piores resultados, obstruindo o progresso do aluno médio e retardando o do bom pupilo. Vozes erguem-se já para me classificar de elitista, contudo, já a primeira Constituição no âmbito da Revolução Francesa declarava que todos os homens eram iguais, sem qualquer outra distinção senão o seu mérito e talento. Ser elitista significa defender e premiar aqueles que trabalham mais, que se esforçam. Quer-se mão-de-obra qualificada, mas a Juventude Comunista Portuguesa não deixa de reivindicar o fim dos exames nacionais, pela óbvia discriminação que eles constituem, como bem sabemos.

Mas de que servem também tais avaliações se – como no caso da prova de Português de nono ano – roçam o cúmulo do ridículo, com perguntas maioritariamente de cruz e outras que parecem escarnecer das capacidades intelectuais dos alunos? É que – isto é importante que se compreenda – a nossa juventude – não obstante tudo o dito, até por mim mesmo – não é estúpida: ela é estupidificada; mais, é encorajada a deslizar para essa estupidez por pedagogias baratas que, de reforma curricular em reforma curricular, têm vindo a simplificar os programas. Há um célebre problema conhecido como “o problema da batata”, que é uma sátira impecável e implacável a este processo degenerativo do ensino. Por questões de espaço, é-me impossível reproduzi-lo nesta coluna, mas pode ser encontrado no sítio http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato/Math/EvolucaoEnsinoMatematica.htm. A Filosofia, suposta disciplina do pensamento, somos levados a decorar, mais que compreender; a aceitar, mais do que a conquistar; a calar, mais do que a discutir.

Assim, com a sociedade incitando os jovens a não pensarem, fornecendo-lhes uma mundividência fabricada pelos mass media, nunca poderá surgir um cidadão no verdadeiro sentido do termo, ciente dos problemas da sua pólis, pronto a discuti-los na ágora moderna. Inversamente, como exposto na última crónica, o jovem comum ocupa-se só de si, dos seus conflitos, dos seus conhecidos e promiscuidades. À crise económica e política acrescente-se a crise dos vindouros. Os efeitos da tomada do poder por parte de um homem conotado com a diversão boémia e as mulheres – que ele apelidava de “os meus colos” – foram desastrosos. Imaginemos um país dum povo de análoga massa à deste homem. A essa evidente crise social que produziu tais homens, ajunte-se uma crise económica e política, com gentes que, já o diziam os romanos, “não se governam nem se deixam governar”. Onde desembocam os pesadelos? ■ o corvo

Altr-eu-ísmo (II Parte do Ciclo Nipónico)

O exacerbado consumismo, referido na passada crónica, das adolescentes japonesas – essa geração que apelidámos de “pedi, e ser-vos-á dado” reflecte, na sua forma mais pura, o vazio que as enche, se tal antítese é possível. E mais uma vez, a sociedade nipónica funciona como reflexo da nossa. O consumismo obsessivo das raparigas é uma alienação de si próprias, porque lhes falta uma individualidade, que elas a todo o custo transferem para as roupas, que passam a ter o encargo de demonstrar um dado estilo de vida. Muitos jovens adoptam modas sem compreenderem plenamente a mentalidade por detrás delas. O caso mais paradigmático é o vestuário gótico, que, agora, como que se banalizou, sem que haja uma verdadeira identificação com tal movimento, como se a roupa conferisse ao seu utilizador a cultura alternativa que lhe é implícita. Os jovens transferem para as coisas a sua personalidade, aquilo que são, sem entenderem que, como no filme Clube de Combate se diz: “Tu não és o teu emprego... tu não és quanto dinheiro tens no banco... nem o carro que conduzes... nem o conteúdo da tua carteira.”

Porque não se é nada senão um vazio, é necessária uma constante alienação de si, presente na nossa sociedade, em fenómenos como o consumismo e a premente socialização. Esta última merece uma maior atenção. Há uma constante vontade de estar acompanhado – o ser humano esqueceu-se do que é estar sozinho e os que o não olvidaram são chamados de misantropos. A personagem Mildred, em Fahrenheit 451 – obra de Ray Bradbury que tive o ensejo de ler estas férias, sobre um mundo onde os livros são proibidos – é a imagem perfeita deste comportamento, sempre agarrada à “família”, nome das três paredes falantes.

Parece que atingimos o cume do altruísmo, quando deixámos de procurar a solidão, para a substituirmos por uma companhia incessante, de que são instrumentos os telemóveis e televisões, que nos invadem a privacidade. O sofisma está em não perceber que este aparente altruísmo não o é; trata-se antes duma dependência. Convivemos com os outros, não vivemos para os outros – isso sim, o real desprendimento apregoado por tantas filosofias e teologias. Fazemos dos outros, nós. É esta diluição da separação clássica com o outro que alimenta os reality shows ou as revistas cor-de-rosa (outra encarnação do voyeurismo) ou ainda as novelas, onde as pessoas pretensamente se vêem reflectidas nos personagens. Por ser a cultura do outro, é a cultura do ver – de olhos fechados só nos podemos conhecer a nós, se algum dia nos conseguimos conhecer o suficiente. Deste culto da visão, vem a fé de Tomé dos dias de hoje, a incapacidade de abstracção (e consequente decadência da Filosofia) ou ainda a perda dos hábitos de leitura, substituídos pela televisão, que remete para o futuro imaginado por Bradbury.

Simultaneamente, atravessamos uma fase aguda de egotismo, em que a preocupação máxima de cada são os seus próprios problemas. Os dois fenómenos não estão de modo algum desconectados, sendo apenas um o produto racional do outro. Obsessivamente centradas no seu umbigo, as pessoas necessitam mais intensamente do que nunca dum divertimento, duma alienação – que acham nos outros – para esquecerem as suas preocupações. Como que retornámos aos velhos tempos romanos, em que a felicidade do povo era feita do seu pão e circo. Mas, como também então afirmava – já com Roma em decadência – Salviano, «Roma moritur et ridet.» - Roma morre, e ri. ■ o corvo