10 September 2008

Kafka em Portugal, Pássaros em Inglaterra (Com Carrossel Literário)

Em finais de Junho/princípios de Julho, fui à secretaria da minha faculdade, com o objectivo modesto de apresentar dois requerimentos para alterar algumas das cadeiras que teria de frequentar no semestre seguinte. Simpática, a funcionária ameaçou-me delicadamente a apresentar a papelada apenas em finais de Agosto, mesmo antes do novo ano lectivo se iniciar. Doutra maneira, acrescentou, teria inclusive de pagar gorduchamente os requerimentos. Deixei-me convencer. Regressado das férias, na data prevista, apresentei-me de novo ao balcão, apenas para que nova funcionária me aconselhasse a escrever os requerimentos só depois de ter completado a matrícula – seria, dizia, mais fácil assim. Mal o mês de Setembro acordou (ainda estava a bocejar e de pijama), eis que me plantei (e levei o regador comigo, pelo sim pelo não) na fila para as matrículas: era o segundo dia que estavam abertas. Pacientemente, esperei uma manhã, despachei o assunto e fui então determinado à secretaria, novamente.
Tinha particular urgência no requerimento: até ao final desta semana precisava de saber se tinha sido deferido ou não. Escrevi em letra bonita as cartas aos presidentes do conselho directivo e do científico e, orgulhoso de, por fim, ter encerrado com sucesso tão épica tarefa, entreguei-as à funcionária, sem deixar de perguntar quando teria uma resposta. «Isto agora pode demorar muito tempo», foi toda a recompensa que tive do meu esforço. Este é o drama absurdo (como uma peça de Brecht com um título de Beckett: à espera do requerimento) de Portugal: um homem pode tentar fazer as coisas com antecedência (ver o futuro com telescópio), mas inevitavelmente é proibido disso, só para ser reconduzido para a última hora que é em cima da hora a cavalo da hora empinada na hora – e, depois de esperar, esperar mais.
Este, porém, foi um dia dos prodígios (plagio Lídia Jorge, que nunca li). Ao longo da minha odisseia de um dia (como a do protagonista do Ulisses de Joyce – este vou ler a seguir), tropecei nos mais fantásticos casos, certamente argumentos perdidos de Kafka. O namorado de uma amiga minha não se conseguia matricular porque a Burocracia (assim mesmo, com maiúscula) insistia que ele tinha propinas em atraso. Descobriu depois que o sistema o acusava de dever uma propina de dois mil e oito cujo prazo máximo de pagamento era... dois mil e sete. Sugeri-lhe que lesse rápido o Em Busca do Tempo Perdido, do Proust: quiçá assim conseguisse recuar no tempo (caso a coisa falhasse, propus-lhe ainda A Máquina do Tempo, de Wells).
Uma outra colega tinha sido também travada na sua matrícula pelo mesmo motivo: devia ainda dinheiro das propinas. A carta que lhe haviam enviado para casa especificava com rigor e com bigode e gravata a quantia em falta: 0,00€ - assim mesmo, com três zeros. Encontrei ainda outra aluna que tinha recebido uma carta avisando-a de que prescrevera, facto que a impedia agora de se inscrever no mestrado que pretendia fazer. Pormenor (quiçá importante): a rapariga, poucos meses antes, recebera o Prémio Feijó, que galardoa os melhores alunos da faculdade. Ao lado dela, um rapaz implorando, em verdadeiro desespero (parecia um quadro de Munch), por um diploma que desde há dois meses mendigava. Tudo está dominado pelo acaso (e pela incompetência), como na Babilónia de Borges, em que tudo era decidido pela lotaria.
Cansado desta overdose de Kafka, resolvi desprezar o exemplo estático do meu irmão (aquele que se esculpiu num busto de Palas em casa de Poe e tem um poema), bati asas e voei. Dizem ser uso dos pássaros fazê-lo, de resto. E a estação é certa e propícia. Resolvi fugir para Bristol, na Inglaterra, numa hibernação de quatro meses (os cientistas que estudam estas coisas chamam-lhe, palavra esquisita, erasmus). Arrumo a pena – recoloco-a na asa, para ajudar ao voo. Estou de partida – e isto não é partida de mau gosto. Vou, muito literalmente, calar o bico, nestes pequenos quatro meses. Até à primeira andorinha (eu venho atrás).