Numa cena do aguardado filme Southland Tales, de Richard Kelly, uma personagem, em posição de professora, comenta: “Os cientistas estão a dizer que o futuro vai ser bem mais futurista do que inicialmente previram.”. A observação rebolou-me na cabeça quando, na semana passada, encontrei no Público uma pequena notícia de uma grande curiosidade. A Coreia do Sul – onde se calcula que, entre 2015 e 2020, todos os lares terão um robô - reuniu um conjunto de peritos para conceberem um “código de ética” para estas máquinas. A iniciativa não é inédita: a Rede Europeia de Investigação Sobre Robótica divulgara no ano passado um relatório onde reflectia, por exemplo, sobre a justeza ética da criação de robôs destinados ao prazer sexual dos humanos, lembrando as máquinas do A.I., de Steven Spielberg.
A iniciativa da Coreia do Sul afectará, em primeira análise, as relações entre robôs e seres humanos: poderá, por exemplo, um homem casar com um andróide? Contudo, parece-me interessante reflectir também sobre a consequência de uma tal legislação para os robôs. A máquina é uma criação teleológica, destinada à execução de uma dada função. Não deverá suceder, porém, que, com os avanços da ciência, a máquina se mostre capaz de entender – e não somente obedecer – a sua finalidade e natureza compulsiva desta. O robô dotado dessa consciência estaria, nitidamente, numa condição de servidão inumana, privado da sua liberdade. Deste modo, qualquer corpus ético que se desenvolva não poderá ser do conhecimento do robô. Naturalmente, daqui resulta um intrincado conflito entre uma visão pragmática da robótica e o lado prometeico e genesíaco desta: a primeira concebendo as máquinas como servos felizes, cujo trabalho nos permitiria a nós, seus senhores, reganhar o otium horaciano; a segunda correndo atrás de um novo ser, par do homem, inteligente e crítico. Para que este último existisse, não poderia estar limitado pelo “código de ética”, mas, não preso por este, a sua vontade de servir os humanos seria decerto reduzida, almejando antes uma vida independente.
Procurando explorar estes imbróglios éticos do progresso científico, mas no campo da biogenética, um estudante canadiano concebeu um pequeno animal doméstico, sem pêlo, diferente das demais espécies conhecidas, cuja expectativa de vida é entre um a dois anos, e que pode ser adquirido em lojas seleccionadas, onde se encontra em caixas de plástico, em hibernação, à espera de ser despertado pelo dono. Pormenor importante: é tudo uma farsa. Adam Brandejs procurou com este seu projecto escolar interrogar as pessoas sobre as fronteiras morais da ciência e estudar o consumismo moderno. A sua conclusão, face aos relatos de crianças que pediam aos pais que comprassem o “bicho”, é, acertadamente, que “para toda uma geração, a vida e a ideia de vida estão a tornar-se bens descartáveis”: infelizmente, também nós aqui em Portugal compreendemos isso recentemente. É este o Maio de 68 da ciência, em que se grita pelos laboratórios: “é proibido proibir!” ?
Por vezes, perante tudo, dava vontade de construir o mundo de novo. Mas até essa última utopia parece ter ruído como uma senhora idosa que cai das escadas abaixo. Notícias recentes do Second Life [à letra, Segunda Vida], jogo cibernético onde o utilizador leva uma vida paralela à sua escolha, mostram que, onde existiam todas as condições e a reunião de vontades necessárias para, a priori, gerar uma outra sociedade melhor, esse ideal ficou pelo caminho: entre os utilizadores já circulam drogas, a corrupção já alastrou, as grandes companhias já asfixiam o mercado. Um grupo de utilizadores mais antigos criou mesmo uma Frente de Libertação que, triste ironia!, leva a cabo acções violentas de protesto, em nome do sonho perdido da terra nova e boa. O futuro pode ser, de facto, bem mais futurista do que previsto inicialmente; todavia, em última análise, assemelhar-se-á sempre, e demasiado, ao triste presente. ■ o corvo
A iniciativa da Coreia do Sul afectará, em primeira análise, as relações entre robôs e seres humanos: poderá, por exemplo, um homem casar com um andróide? Contudo, parece-me interessante reflectir também sobre a consequência de uma tal legislação para os robôs. A máquina é uma criação teleológica, destinada à execução de uma dada função. Não deverá suceder, porém, que, com os avanços da ciência, a máquina se mostre capaz de entender – e não somente obedecer – a sua finalidade e natureza compulsiva desta. O robô dotado dessa consciência estaria, nitidamente, numa condição de servidão inumana, privado da sua liberdade. Deste modo, qualquer corpus ético que se desenvolva não poderá ser do conhecimento do robô. Naturalmente, daqui resulta um intrincado conflito entre uma visão pragmática da robótica e o lado prometeico e genesíaco desta: a primeira concebendo as máquinas como servos felizes, cujo trabalho nos permitiria a nós, seus senhores, reganhar o otium horaciano; a segunda correndo atrás de um novo ser, par do homem, inteligente e crítico. Para que este último existisse, não poderia estar limitado pelo “código de ética”, mas, não preso por este, a sua vontade de servir os humanos seria decerto reduzida, almejando antes uma vida independente.
Procurando explorar estes imbróglios éticos do progresso científico, mas no campo da biogenética, um estudante canadiano concebeu um pequeno animal doméstico, sem pêlo, diferente das demais espécies conhecidas, cuja expectativa de vida é entre um a dois anos, e que pode ser adquirido em lojas seleccionadas, onde se encontra em caixas de plástico, em hibernação, à espera de ser despertado pelo dono. Pormenor importante: é tudo uma farsa. Adam Brandejs procurou com este seu projecto escolar interrogar as pessoas sobre as fronteiras morais da ciência e estudar o consumismo moderno. A sua conclusão, face aos relatos de crianças que pediam aos pais que comprassem o “bicho”, é, acertadamente, que “para toda uma geração, a vida e a ideia de vida estão a tornar-se bens descartáveis”: infelizmente, também nós aqui em Portugal compreendemos isso recentemente. É este o Maio de 68 da ciência, em que se grita pelos laboratórios: “é proibido proibir!” ?
Por vezes, perante tudo, dava vontade de construir o mundo de novo. Mas até essa última utopia parece ter ruído como uma senhora idosa que cai das escadas abaixo. Notícias recentes do Second Life [à letra, Segunda Vida], jogo cibernético onde o utilizador leva uma vida paralela à sua escolha, mostram que, onde existiam todas as condições e a reunião de vontades necessárias para, a priori, gerar uma outra sociedade melhor, esse ideal ficou pelo caminho: entre os utilizadores já circulam drogas, a corrupção já alastrou, as grandes companhias já asfixiam o mercado. Um grupo de utilizadores mais antigos criou mesmo uma Frente de Libertação que, triste ironia!, leva a cabo acções violentas de protesto, em nome do sonho perdido da terra nova e boa. O futuro pode ser, de facto, bem mais futurista do que previsto inicialmente; todavia, em última análise, assemelhar-se-á sempre, e demasiado, ao triste presente. ■ o corvo